Por Inês Castilho
Precisamos ativar o educador existente em cada um de nós, para viabilizar a transição à sustentabilidade, diz a ambientalista Raquel Trajber |
A educação das juventudes – assim mesmo, no plural – é a tarefa mais
urgente que temos pela frente, pois delas dependerá a mudança para uma
sociedade mais justa e sustentável. “A juventude perpassa culturas,
etnias, classes sociais, acesso a bens ou não. Como fazer, junto com as
juventudes, a transição para a sustentabilidade?” – pergunta a
antropóloga Raquel Trajber nesta entrevista, ocorrida no âmbito da
pesquisa qualitativa Política Cidadã, que o instituto Ideafix produziu
para o IDS (Instituto Democracia e Sustentabilidade).
“Não precisamos começar tudo de novo, mas potencializar o que tem de
transformador na humanidade, os valores que promovem a vida”, diz ela,
lembrando não haver um modelo único, mas “várias buscas e experiências
de sociedades sustentáveis”. Coordenadora de educação ambiental do
ministério da Educação durante sete anos, Raquel está desde 2011
trabalhando com educação informal voltada para jovens no Imas (Instituto
Marina Silva), em Brasília.
Para ela, a sustentabilidade – entendida em suas dimensões
econômica, social, política, cultural – é incompatível com o
capitalismo. “A economia verde é a mesma mulher gorda do neoliberalismo,
vestida com outra roupa, de outra cor” – afirma. Raquel lembra que a
transição para sociedades sustentáveis não pode ser apenas individual:
“Não é aquela história do beija-flor que fica apagando o fogo, fazendo a
sua parte. A mudança precisa ser coletiva e, para ser coletiva, precisa
mudar a visão de mundo das pessoas”.
A necessária governança global está difícil de ser alcançada, diz
ela. “Meio ambiente não tem fronteiras nacionais, e precisa com urgência
ser percebido como nossa única biosfera, uma fina camada que mantém a
vida no planeta.” Mas ainda temos, no Brasil, reservas que podem nos
ajudar a conduzir essa passagem para um futuro: “As culturas populares e
as dos povos originários – não a cultura de massa – e a ciência
engajada na sustentabilidade podem nos ajudar na transição.” A seguir, a
entrevista.
Qual é a sua percepção sobre a participação política dos brasileiros?
As pessoas no Brasil se manifestam em eventos religiosos e se mobilizam
por atividades de dança, música, muito mais do que por ações políticas.
Foram organizadas manifestações contra a corrupção, mas nem todos
participaram presencialmente. No entanto, muita gente assinou a petição
da Ficha Limpa. Então, resta estudar o tipo de manifestação política que
os brasileiros estão dispostos a fazer, e a forma como isso se dá.
Comparados com as manifestações que pipocaram pelo mundo, como a
Primavera Árabe, temos um interesse menor. Foram movimentos diferentes
entre si, mas que aconteceram em muitos lugares do mundo. As
manifestações na Europa e dos jovens chilenos pela educação pública
estão ligadas ao livro “Indignai-vos”, do Stéphane Hessel. Quem se
manifesta, em geral são os jovens – e os jovens aqui no Brasil estão
pensando em outras políticas.
É difícil de falar de uma juventude só delimitada por faixa etária. A
juventude perpassa cultura, etnias, classes sociais, interesses
múltiplos, acesso a bens ou não, tudo isso. Como fazer, junto com as
juventudes, a transição para a sustentabilidade? Como se constroem os
caminhos para sociedades sustentáveis a partir das várias falas,
discursos e formas de comunicação?
Que temas você considera capazes de mobilizar a sociedade?
Uma das minhas preocupações é a questão das florestas. Não parece um
tema que mobiliza as pessoas, porque é aparentemente distante do
cotidiano – ao contrário da Ficha Limpa, pois políticos corruptos
provocam muita raiva. Todo mundo é a favor das florestas, mas só se
envolvem mesmo algumas ONGs e entidades, estudantes. Do outro lado atuam
poderosos lobbies do agronegócio, aqueles que têm interesse pessoal no
uso da terra. Esses caras atuam na política por interesses privados,
pela concentração privada de renda. Essa é a forma como as elites
brasileiras fazem política: concentração de poder e de recursos.
Um tema que acho que vai pegar já já é a profunda desigualdade existente
no Brasil. Esta é uma sociedade perversa, que promete um grande consumo
a poucos. A maioria não vê possibilidade de entrar no consumo e fazer
parte da concentração de renda indecente que existe aqui e em quase
todos os países, com raras exceções, como Japão, Escandinávia…
Que canais o cidadão comum, o jovem em particular, tem para atuar politicamente no Brasil?
Essa tendência de uso das redes de comunicação – twitter, facebook – é
uma forma de ativismo vinculada à juventude. Agora, resta ver se aqui no
Brasil vai ser usada para questões políticas. As outras formas, como o
voto, são muito frágeis e incipientes. A democracia representativa no
Brasil tem ainda o agravante de ter o voto obrigatório – uma coisa que
parece estar fazendo água. A juventude não acredita mais nisso, é muito
pouco.
A gente precisa encontrar novas formas de atuação política de fato, o
que não é tão trivial, porque a comunicação pelas redes sociais corre o
risco de ser extremamente superficial, apenas fogos de artifício. Como é
que se encontra densidade nesses fogos de artifício? Pode ser o desafio
para a educação, uma educação para a cidadania da contemporaneidade, e
não a do século 20.
O que marca a diferença entre a cidadania de hoje e a do século passado?
Parece haver a não aceitação de um forte poder autocrático central.
Outro fator é a estranha relação entre cidadania e consumo dada pelo
capitalismo: quem tem acesso ao consumo é mais cidadão, tem mais
cidadania. Porque existe essa confusão entre o que você consome e a sua
identidade como cidadão – e não é assim, é bem ao contrário. Há tantos
políticos, empresários, traficantes de drogas, de animais silvestres
que, embora sejam totalmente não cidadãos, são considerados cidadãos
porque têm acesso ao consumo. Uma política decente deveria atuar nessa
dimensão e acabar com a desigualdade.
Desconstruir essa identidade baseada no consumo: isso é compatível com o capitalismo?
É totalmente incompatível com o capitalismo. É insustentável, na acepção
mais ampla do termo. Insustentável socialmente, economicamente,
ambientalmente, politicamente. Insustentável para a dignidade humana e a
vida no planeta. Aponta para uma transformação sistêmica e radical do
sistema socioeconômico, político.
Como você vê a vida nas próximas gerações?
Gostaria de enxergar um mundo justo e bom para as próximas gerações, até
porque sou avó. Mas, pelo andar da carruagem, não estou conseguindo
enxergar as mudanças profundas que precisam acontecer, razoavelmente
orquestradas, com certa governança global. A gente tem de caminhar para
isso, mas está muito difícil negociar.
Tenho comparado o desenvolvimento sustentável e a tal economia verde à
mesma mulher gorda do neoliberalismo, mas vestida com outra roupa, de
outra cor. Há uma enorme dificuldade de os Estados-nações promoverem uma
governança que pense, planeje e seja executada em termos planetários.
Porque meio ambiente não tem fronteiras nacionais, e precisa com
urgência ser percebido como a nossa única biosfera, uma fina camada que
mantém a vida no planeta.
Mas não quero restringir meio ambiente a preocupações com a ecologia –
uma área das ciências biológicas – ou com a natureza. Os seres humanos
nem sabem mais o que é natureza, o meio ambiente foi reordenado pela
vida sociocultural humana e nada mais pode ser chamado de apenas natural
ou social. A natureza se transformou em áreas de ação nas quais
precisamos tomar decisões políticas, práticas e éticas.
Natureza e cultura já não são tão distintas…
Está tudo tão imbricado, que não se pode falar mais de uma governança
ambiental – devemos pensar em função da sustentabilidade. Mas os
governos não conseguem vislumbrar uma nova ordem mundial, porque estão
amarrados à visão de mundo do século 20, 19, de soberania nacional.
Até por ironia, nem no capitalismo de mercado, no qual as multinacionais
ocupam um espaço enorme, parece existir a possibilidade de soberania.
Você acha que os Estados nacionais enfrentam as grandes corporações
multinacionais? Não. E todo esse crescimento econômico que a gente
observa nos últimos anos, apesar das crises americana e europeia, é
financiado pelo meio ambiente!
Meio ambiente é entendido como as bases de sustentação da vida no
planeta – e todas as contradições estão aparecendo aí, nessas bases de
sustentação da vida. Temos graves problemas climáticos, gerados por
tecnologias que, como escreveu Hans Jonas,
têm efeitos colaterais que a gente não consegue dominar, pois vêm sem
manual de instruções. Usamos tecnologias que causam tanto impacto na
atmosfera, na água, na terra que nos alimenta, que colocam a nossa vida
em risco.
É preciso deixar marcado que essa transição para sociedades sustentáveis
não pode ser apenas individual. Não é simplesmente cada um ou cada uma
fazendo a sua parte, aquela história do beija-flor que fica apagando o
fogo, A mudança precisa ser coletiva e, para ser coletiva, é necessário
mudar a visão de mundo das pessoas.
Os valores da espiritualidade ajudariam a sustentar essa transição?
Os valores de espiritualidade são bem-vindos. A própria igreja católica
vem mudando sua atuação ao longo do tempo e está cada vez mais voltada a
questões ambientais. O budismo, todas essas religiões estão vivendo na
contemporaneidade, com formas mais profundas de perceber a vida e o
cosmos. Esses valores religiosos, que são sobretudo éticos e morais,
contribuem para a mudança.
A educação é outra forma de sustentar a transição, contanto que seja
integral, integrada, íntegra, com percepção muito mais ampla do que a da
escola. Precisamos mobilizar o educador e a educadora existentes em
cada pessoa para uma educação ambiental – o ambiental é estruturante
porque demarca um campo político de promoção da ética e da cidadania da
sustentabilidade. A escola também precisa mudar. Temos ainda bases
culturais, como as culturas populares e as dos povos originários – não a
cultura de massa – e a ciência engajada na sustentabilidade, que podem
nos ajudar na transição.
Os valores dos anos 60 e 70 ainda estão vivos ou se perderam?
Não consigo deixar de olhar a historicidade e a memória – não só do
Brasil, pois essas tendências são globais. Os movimentos dos anos 60 na
Europa se refletiram no Brasil mais nos anos 70, por causa da ditadura
militar. A juventude brasileira se voltou para essa coisa mais hippie,
da contracultura; ou para a ação política, de combate à repressão e à
ditadura – que estava longe de ser uma ação de massa, mas teve ações
corajosas e cheias de idealismo.
Tudo isso perdeu sua força transformadora por causa do capitalismo
global, para o qual o Brasil se abriu por decisão política – e também
porque não tinha condições de ficar de fora. Não existe o fora do
sistema, isso é uma ilusão. É impossível, cada vez mais impossível
romper com um sistema perverso que só gera desigualdade. E desigualdade
gera o quê? Violência, problemas de saúde pública, menos acesso à
educação de qualidade – que foram crescendo de forma incontrolável.
Mas podemos nos apoiar em outros valores – na ciência que considera a
dimensão da sustentabilidade, nas religiões, na educação – para
pensarmos na possibilidade de construir uma transição para a
sustentabilidade. Não temos que começar tudo de novo: a gente precisa
potencializar o que tem de transformador na humanidade, os valores que
promovem a vida. E começar a repensar a sociedade em direções múltiplas
de possibilidades, de sociedades sustentáveis, assim no plural. Não tem
um modelo pronto e hegemônico.
Em que outros valores devemos nos apoiar?
O primeiro é a percepção do bem comum, e não voltada ao interesse
individualista. A partir daí surgem outros: igualdade, solidariedade,
justiça social e ambiental.
A injustiça ambiental está diretamente ligada à desigualdade. As
populações mais pobres são empurradas pelo sistema para os piores
lugares de se viver, os mais vulneráveis, com mais riscos – em especial
em tempos de mudanças climáticas. Essas pessoas têm menos acesso a água
limpa, alimentos de qualidade, segurança, saúde preventiva. Até a
obesidade, que está aumentando no Brasil, atinge principalmente os mais
pobres – do mesmo modo que a subnutrição. Decorre de uma dieta com base
em alimentos industrializados, que já vêm prontos e são mais baratos,
mas não têm os nutrientes de que precisamos.
Um parêntesis: você tomou conhecimento da pesquisa que detectou a contaminação de leite materno por agrotóxicos?
Pois é, vira e mexe essas pesquisas vêm à tona, mas nada muda devido aos
interesses da agroindústria. Isso é injustiça ambiental.
Pensando nas considerações que fez até aqui, você imagina novas formas de fazer política, um novo sistema político?
Acho que a democracia teria de ser participativa direta e baseada em
núcleos de poder difuso – local, não centralizada, garantindo que
realmente não haja um poder central, só nas mãos da mesma minoria que
atua na política partidária com foco no poder hegemônico.
Mas essas ideias só podem ser elaboradas no coletivo, dialogando com as
pessoas, pensando junto. Porque o desafio é que não existe um modelo. Em
primeiro lugar, deveríamos pensar globalmente – não no formato
fragmentado do sistema capitalista globalizado, mas como seres que fazem
parte do Planeta Terra. E respeitar as diferenças culturais e
ambientais das várias sociedades, de modo que essas diferenças não se
tornem sinônimo de melhor ou pior. É o que uma nova política precisaria
propiciar.
Andei conversando com pessoas que se sentem atraídas pela densidade
ética da Marina Silva, e muitas vêm dizendo: “Nunca quis me meter com
política, mas de um movimento diferente eu quero fazer parte; não quero é
entrar num partido”. Precisamos encontrar formas de construir uma teia –
mais que uma rede, uma teia de construção dessa nova política, que seja
uma transição para a sustentabilidade.
Originalmente publicado no site Outras Palavras, 22/02/2013.
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