"Ciência é algo verificável, baseado em evidências e cumulativo.
Mesmo tendo titulação acadêmica, não se pode afirmar qualquer coisa,
desconectando-se da realidade", considera o pesquisador.
"Este ano será divulgado o quinto relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC
e, apesar do conservadorismo da comunidade científica, as evidências
são tão gritantes que, sem dúvida, algumas das afirmações do relatório
referentes ao aquecimento global e ao papel antrópico vão ser mais
fortes ainda que do quarto", informa Alexandre Araújo Costa, professor
titular da Universidade Estadual do Ceará, em entrevista concedida, por
telefone, à IHU On-Line.
Segundo ele, "o IPCC deixa muito claro que o aquecimento global é inequívoco. Ele existe e é antrópico. Não há como explicar esse aquecimento a não ser pelo aumento na concentração dos gases do efeito estufa.
Se fosse pela atividade solar e outros efeitos naturais, teríamos tido,
na realidade, um ligeiro resfriamento na metade final do século XX, uma
diminuição da ordem de 0,1 a 0,2 graus e não um aquecimento de 0,8
graus".
Alexandre Araújo Costa (foto) é professor, pesquisador e
um dos autores do primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças
Climáticas. Mestre em Física pela Universidade Federal do Ceará, cursou
doutorado em Ciências Atmosféricas pela Colorado State University e
possui pós-doutorado pela Universidade de Yale. Foi gerente do
Departamento de Meteorologia e Oceanografia da Fundação Cearense de
Meteorologia e Recursos Hídricos. É professor titular da Universidade
Estadual do Ceará e bolsista de produtividade do CNPq.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor faz
parte da corrente de cientistas, que é a grande maioria, que sustenta
que há, sim, aquecimento global relacionado à emissão de gases do efeito
estufa, entre eles o CO2. Realmente existe o aquecimento global causado
por esses gases ou a variação térmica do planeta está relacionada a
fenômenos naturais?
Alexandre Araújo Costa – Ciência é algo bem estabelecido,
verificável, baseado em evidências e cumulativo. Mesmo tendo titulação
acadêmica, não se pode afirmar qualquer coisa, desconectando-se da
realidade. Por exemplo, as espécies animais que existem hoje
surgiram há 6 mil anos atrás do jeito que são? É evidente que não, pois
isso contraria as evidências. Do mesmo modo, negar o aquecimento global é
contrariar medições, dados, evidências. Então, é preciso ser bem claro.
Não existe mais debate na comunidade científica quanto a isso. O
pesquisador analisa dados, submete artigos, isso é debatido em
congressos científicos, isso é avaliado para publicação em periódicos.
E, obviamente como são hipóteses testáveis, esse processo é repetido
várias vezes. No nosso caso específico, existe um corpo de evidências
tão grande quanto o que existe a favor da evolução das espécies ou da
gravitação universal.
Caminho científico
O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC existe
desde 1988, com o objetivo de contribuir para o entendimento dos
processos climáticos. Sou um dos autores principais do primeiro
relatório do Painel Brasileiro das Mudanças Climáticas, que funciona na
mesma lógica, inclusive com a mesma distribuição de trabalho em grupos
(bases físicas, vulnerabilidade e impactos e mitigação) e posso lhes
dizer como funcionam os painéis. O IPCC não faz nada que não seja
levantamento de literatura. Ou seja, não existe uma ciência produzida
pelo IPCC à parte da ciência do clima e das demais áreas do
conhecimento, que se reflete no que é publicado em revistas tais como a
Science e a Nature, além de inúmeras publicações da área em outros
meios. Junto à comunidade de cientistas ativos, que desenvolvem pesquisa
independente e publicam, existe um claro consenso em torno da
existência do aquecimento global
e de suas causas. Infelizmente, existe uma distorção disso junto à
opinião pública, que é, na verdade, consequência de uma exposição
desproporcional dos que defendem a negação das mudanças climáticas, algo
que se assemelha ao criacionismo ou do geocentrismo.
Levantamento histórico
O que a ciência tem é atestado por medidas de superfície, de rádiossonda, de satélites. Outro ponto é que o
aquecimento não se restringe à temperatura da superfície e do ar, pois
existe um fluxo de calor para o planeta que interfere em outros
componentes do sistema climático. Na Física básica, aprende-se
que existe o calor sensível, que envolve mudança de temperatura sem
mudar a fase e o calor latente, que, por exemplo, faz com que o gelo
derreta sem mudar a temperatura. Quando dizem “não houve mudança
significativa de temperatura, nos últimos 5, 6 anos”, isso é uma meia
verdade, pois houve um aumento do conteúdo de calor dos oceanos, sem
contar que o que aconteceu com as calotas polares, que perderam massa,
principalmente no Ártico. Tudo isso é perfeitamente compatível
com o que é fundamental nesse processo todo, que é um desequilíbrio
energético: existe mais energia chegando no planeta na forma de radiação
de onda curta, isto é, solar, do que deixando o planeta na forma de
radiação de onda longa, ou infravermelho. Por conta desse desequilíbrio
energético, o planeta está aquecendo, conforme o esperado para uma
concentração de CO2 beirando 400 partes por milhão.
Experimentos
É muito estranho e sinto até um certo constrangimento em ovir alguém
dizer que o CO2 não exerce controle sobre o clima. Ora, a primeira
estimativa do potencial de aquecimento do clima causada
por um eventual aumento de CO2 foi feita ainda no século XIX por
Arrhenius, uma estimativa razoável para a época. É um fato: nós estamos
em meio a um experimento climático planetário involuntário de grandes
proporções, que está mudando a face do planeta. Nas eras glaciais, a
concentração desse gás era de 180 ppm e nos interglaciais dos últimos
800 mil anos não ultrapassou 300 ppm. Mais: não há registro na história
da Era Cenozóica, nos últimos 65 milhões de anos, de existência da
calota polar do Ártico em períodos com concentrações de CO2 acima de 400
partes milhão. Há 34 milhões de anos, quando surgiu a calota polar da
Antártica, isso aconteceu justamente quando a concentração de CO2 baixou
de 500 ppm (partes por milhão). Toda a história do nosso planeta
mostra, portanto, uma relação íntima entre CO2 e temperatura.
IHU On-Line – Centros de pesquisa como do Met Office, de Oxford a
Berkeley, e entidades globais defendem que existe o aquecimento global.
O senhor considera que há o risco destas instituições estarem
envolvidas em manipulação de informações para defender interesses dos
países ricos?
Alexandre Araújo Costa – Pensar nessa possibilidade é
pensar em uma teoria da conspiração inteiramente fantasiosa, além do que
chega a ser ofensivo para nós, cientistas. A comunidade científica do
clima é a mais transparente que existe. Exatamente porque o clima não
tem fronteiras, nossa ciência não tem fronteiras também. Os dados
coletados, os resultados de modelos estão aí para todo mundo. Então a
resposta é muito clara: não. Não há manipulação de dados pelos centros.
Para que isso pudesse ser uma história coerente, teria que ter todos os
cientistas da área envolvidos nessa conspiração. Além deles, todos os
editores das revistas científicas que publicam artigos com os
resultados. Teria que ter corrompido as empresas que fabricam sensores meteorológicos, porque os dados de muitos sensores chega automaticamente e por aí vaí...
Interesses
Se há interesses em jogo, posso garantir que não há interesse
maior do que o das companhias de combustíveis fósseis em confundir a
opinião pública. É claro que há empresas que querem vender seus
aerogeradores, seus painéis solares, etc. Sem dúvida alguma. Mas veja:
entre as maiores empresas do mundo, a de maior faturamento é a Shell, a
segunda é Exxon. Da lista de 12 maiores companhias do mundo, só o Walmart não pertence ao ramo do petróleo,
automobilístico, do gás natural ou do carvão mineral. Há também uma
pesquisa que mostra claramente o envolvimento desse setor com os bancos,
com os executivos destes tendo assento no conselho deliberativo dessas
companhias e vice-versa. E essas corporações poderosíssimas tentam
confundir a opinião pública para atrasar as medidas necessárias para
conter o aquecimento global, para que seus lucros gigantescos não se
reduzam. É a mesma tática utilizada pela indústria do tabaco que, mesmo
diante de todas as evidências de câncer ligado ao fumo, conseguiu ganhar
muito tempo, semeando dúvidas que não deveriam existir. Sobre o clima, é
até espantoso que nós cientistas tenhamos conseguido fazer minimamente
que nossas descobertas sejam vistas, sejam ouvidas, passando por cima
dessas corporações.
IHU On-Line – É possível estabelecer um diálogo entre estas duas
correntes, isto é, os que atribuem o aquecimento da superfície
terrestre aos gases do efeito estufa e os que negam essa relação?
Alexandre Araújo Costa – O que existe é o
método científico. A ciência é totalmente aberta e há um diálogo
constante na comunidade científica com base neste método.
Tipicamente, em suas pesquisas, obtêm-se resultados que devem ser
reportados em um artigo e submetidos à apreciação editorial de revistas e
periódicos. Os pares avaliam, questionam, verificam a correção do
método, a qualidade e o mérito do trabalho. O que se pode chamar
de diálogo se dá desta forma, através da literatura científica, porque
em ciência é preciso estar amarrado em evidências. Nesse
contexto, o IPCC cumpre justamente o papel de facilitar, acelerar e
qualificar o diálogo na comunidade científica, ao produzir aquilo que
são certamente o mais rico compêndio da ciência contemporânea: os seus
relatórios. Neles, para se obter, digamos, uma estimativa da influência
do sol ou do CO2 no clima nos últimos 250 anos, consideram-se as
estimativas feitas por vários autores. O número que o IPCC mostra, que é
uma média de todas essas estimativas (publicadas em artigos revisados),
é que o acúmulo de energia devido ao CO2, em 2007, já era oito vezes
maior que a contribuição das variações na atividade do sol.
IHU On-Line – Quais foram os principais avanços científicos que
permitem garantir que o aquecimento global, atualmente, decorre da
intervenção humana no planeta?
Alexandre Araújo Costa – Agora temos uma rede de
sensores observacionais bastante significativa. Uma das recentes
lacunas, mas que está mais próxima de ser preenchida, são as medidas nos
oceanos. Hoje existe uma rede de boias que permite quantificar o
conteúdo de calor oceânico
e entender melhor os fluxos de energia. Afinal, sabe-se que os
continentes aquecem e esfriam muito rapidamente, e a maior contribuição
para a termodinâmica do clima vem dos oceanos. Na verdade, mais de 90%
do desequilíbrio energético associado ao aumento do CO2 é energia que
vai para os oceanos. Uma fração menor vai para o gelo, outra para a
superfície, outra para a atmosfera. Se formos verificar o que tem
acontecido, perceberemos que o aquecimento é muito mais visível quando
monitoramos os oceanos.
Monitoramento instantâneo
Os satélites também têm permitido que nós possamos fazer o monitoramento
global como nunca antes se imaginou, principalmente das calotas
polares, onde os resultados são dramáticos. O gelo marinho não tem
apenas diminuído em área; ele tem diminuído em volume. Além de estar
cobrindo uma área menor, tendo chegado ao menor valor da história no ano
de 2012, ele tem se tornado muito menos espesso. A estimativa em 1979
era de que o gelo marinho do Ártico ocupava 16.855 quilômetros
quadrados. Em 2012, são apenas 3.261 quilômetros quadrados.
Projeções conservadoras
Com base nessas novas observações e a partir dos relatórios do IPCC, é
possível aferirmos as projeções com a realidade. Em termos da
temperatura da superfície, a evolução recente da temperatura, tem estado
perfeitamente dentro do intervalo de projeções, determinado a partir
dos vários resultados de modelos diferentes, de vários grupos de
pesquisa. Já nas outras questões, as projeções têm-se mostrado
conservadoras. A expectativa era a de que os oceanos, no começo deste
século, se elevassem a uma taxa de 2 milímetros por ano, mas o que a
realidade mostra são 3,3 milímetros por ano, correspondendo ao valor
mais “alarmista” dentre as projeções de 2007. Hoje, todos sabemos que a projeção de elevação do nível do mar vem sendo subestimada.
Outra projeção que se mostrou muito “cautelosa” é a de perda de gelo nas
calotas. A média de degelo que se viu no Ártico em 2012 somente era
esperada para 2030, pelo mais pessimista de todos os modelos e para 2060
considerando-se a média de todas as projeções. Havia até modelos que
apontavam que chegaríamos no final do século e não teríamos o degelo de
2012. A questão é mais grave porque há, aí, mecanismos de
retroalimentação. O gelo é mais brilhante do que o oceano e o solo, ou
seja, tem maior albedo, então quando ele derrete expõe uma superfície
mais escura, que absorve mais radiação solar, aquecendo o planeta mais
rapidamente. Quando se tem um degelo na superfície, a tendência também é
que a água de cima da superfície pressione o gelo e consiga perfurar a
calota e chegar até a base, levando à ruptura de grandes blocos de gelo.
Por fim, sabe-se hoje que o gelo mais novo deixa passar mais raios
solares o que gera um aquecimento no oceano abaixo. Esses aspectos não
eram levados em conta pelos modelos até recentemente, e isso faz muita
diferença.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Alexandre Araújo Costa – Este ano será divulgado o
quinto relatório do IPCC e, apesar do conservadorismo da comunidade
científica, as evidências são tão gritantes que, sem dúvida, algumas das
afirmações do relatório vão ser mais fortes ainda que do quarto. O IPCC
deixa muito claro que o aquecimento global é inequívoco. Ele existe e é
antrópico.
Combustíveis fósseis
Nós sabemos que o aquecimento global vem da queima de combustíveis fósseis
por uma razão muito simples. São vegetais soterrados há milhões de anos
que se decompuseram e se transformaram em hidrocarbonetos. A composição
isotópica é diferente entre a atmosfera e as plantas que, quando fazem
fotossíntese, dão “preferência” ao carbono 12. Quando as plantas
apodrecem, milhões de anos depois, os átomos de carbono permanecem.
Portanto, os combustíveis fósseis têm uma composição de carbono 12 e 13
diferente da atmosfera, ou seja, são pobres em carbono 13. Se eu queimar
combustíveis fósseis e colocar na atmosfera o resultado da queima, vou
diminuir a proporção de átomos de carbono 13, que é exatamente o que
está acontecendo! Sabemos que o planeta aquece, sabemos que isso
se dá principalmente pela elevação das concentrações de CO2 e sabemos
exatamente de onde esse aumento vem. Para mim, não há dúvida de que as
distorções existentes entre a comunidade científica e o que é veiculado
midiaticamente estão relacionadas aos interesses da indústria
petroquímica e, no Brasil, a outro componente: o agronegócio.
Basta ver o relatório do Aldo Rebelo, de desmanche do Código Florestal,
que lançou mão de argumentos de negação do aquecimento global.
Desigualdade, quem sofre são os mais pobres
Outra coisa que é fundamental ressaltar é a desigualdade no processo
todo. Quem lucrou com as emissões foram meia dúzia de corporações. Quem é
mais pobre é que sofre mais com os impactos. É sobre o pescador que
depende dos peixes, que dependem dos corais e pequenos moluscos cuja
sobrevivência está sendo comprometida por conta da acidificação dos
oceanos, resultado da dissolução do CO2 acumulado na atmosfera. Também
são esperados mais eventos extremos com os climas mais quentes, tanto
mais enchentes quanto mais secas.
Não é à toa que habitantes de países insulares têm apresentado
reivindicações muito claras em relação ao que se refere ao clima, porque
buscam que a concentração de CO2 volte para 350 partes por milhão. Esse
é o nível seguro que evitaria o aquecimento de um grau. Acima dessa
concentração, como já estamos, os impactos esperados sobre esses países
são enormes, não só devido à elevação dos oceanos, o que pode fazer
alguns deles praticamente desaparecerem ao longo desse século, como
também pode comprometer, já nos próximos anos, seus lençóis freáticos,
ficando sem água potável.
Energia renovável
O Brasil poderia dar um bom exemplo e sair dessa lógica de hidrelétricas de grande porte e termelétricas, que teve continuidade no governo Dilma, em relação ao de FHC. Hoje, 5% da energia total da Alemanha vem de energia solar,
grande parte delas de cima do telhado das casas. Eles têm um plano de
em dez anos desativar todas as usinas nucleares exatamente em função do
crescimento da energia solar. O local do Brasil onde tem menos radiação
solar tem 40% a mais que a Alemanha. Imagina se o governo subsidiasse
estes painéis! Eu acho que para as famílias de baixa renda seria doar
mesmo e, para a classe média, subsidiar ou criar linhas de crédito. Esse
é o caminho.
Zerando o desmatamento e com os recursos renováveis que temos em
abundância, o Brasil poderia ser um país de emissão zero, exceto pelo
transporte, que também pode evoluir com a necessária aposta no
transporte público. O Brasil poderia, então, “falar grosso”,
não só com Estados Unidos, mas também com a Comunidade Europeia, com a
China e com a Índia, que não têm cortado as emissões em níveis
aceitáveis. Em relação às políticas públicas de incentivos ao transporte
individual, como a redução de IPI,
supostamente para preservar os empregos dos trabalhadores, o país criou
algumas cidades com o trânsito totalmente inviabilizado, sem falar da
emissão enorme de CO2. É preciso um transporte coletivo bom e barato. É
um direito nosso de ir e vir, casado com a necessidade de reduzir
emissões.
Originalmente publicado no site do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 28/02/2013.
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