Conhecimento científico e popular na luta pela saúde – Dossiê da
Abrasco reúne pesquisas e relatos de comunidades diretamente atingidas
pelos agrotóxicos para denunciar impactos do agronegócio na saúde e no
meio ambiente.
“Trabalhava com flores em Atibaia, São Paulo. Usava muito veneno.
Passava muito mal por causa disso. Sentia dor de dente, tremor nos
lábios, aceleração no coração, escurecimento de vista, dor de cabeça, e
não só eu, mas toda minha família. Todos os meus amigos também passavam
mal. Meu amigo Nivaldo está com infecção no fígado por causa dos venenos
e foi proibido de trabalhar no meio das flores. Sem falar nos animais
que bebem a água que tem o veneno e morrem. Peixes na represa morrem
também. Vendo isso, tomei a decisão de vir embora para o Sul de Minas
Gerais. Chegando aqui, comecei a trabalhar com café, mas vi que também
usava veneno. Tomei a decisão de trabalhar numa chácara. Porém na
chácara também se usam o mata-mato, Roundup, glifosato e Gramossil”.
O depoimento acima foi feito pelo agricultor Domingos Rodrigues da
Silva, do Sindicato dos Empregados Rurais de Eloi Mendes, de Minas
Gerais, e retrata uma realidade comum a muitos produtores rurais
brasileiros atingidos diretamente pelo uso intensivo de agrotóxicos. O
depoimento de Domingos integra o Dossiê da Associação Brasileira de
Saúde Coletiva (Abrasco) intitulado ‘Um alerta sobre os impactos dos
agrotóxicos na Saúde’, cuja terceira e última parte foi lançada durante o
10° Congresso Nacional da entidade, realizado em Porto Alegre em
novembro. Durante a cerimônia de lançamento da última parte do dossiê,
Luiz Augusto Facchini, então presidente da Abrasco, ressaltou a
importância do documento e os fatores que motivaram a entidade a
concebê-lo. “O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo.
Gostaríamos de reverter esse quadro. Além de aumentar a dependência dos
agricultores pelas multinacionais, os agrotóxicos envenenam a população e
os trabalhadores brasileiros. Para fortalecer as bases de uma sociedade
saudável e desenvolvida, o Brasil deve investir na agricultura familiar
e na agroecologia, aumentar a escolaridade e o conhecimento
técnico-científico dos agricultores, e ao mesmo tempo valorizar os seus
conhecimentos tradicionais”, afirmou.
O dossiê começou a ser pensado durante o Encontro Nacional de Diálogos e
Convergências, em setembro de 2011, como explica Raquel Rigotto,
pesquisadora do núcleo Tramas da Universidade Federal do Ceará (UFC). “A
Abrasco se organizou para participar do encontro, e construímos uma
articulação entre vários grupos de trabalho. Durante o evento tivemos
contato com movimentos sociais que trouxeram uma reflexão acerca das
implicações para a saúde dos agrotóxicos e pensamos que a melhor forma
de contribuirmos seria elaborando um dossiê”. Com um total de 469
páginas, o documento fez uma revisão bibliográfica do trabalho de
pesquisadores de várias universidades e instituições públicas de
pesquisa do país, incluindo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ele foi
lançado em três etapas, cada uma focando aspectos diferentes da temática
dos agrotóxicos. A primeira foi lançada em abril deste ano, durante o
World Nutrition, congresso internacional de nutrição no Rio. Por conta
disso, focou na questão da segurança alimentar e nutricional. A segunda
parte, intitulada ‘Agrotóxicos, saúde, ambiente e sustentabilidade’,
procurou dialogar com os debates da Cúpula dos Povos, onde o documento
foi lançado. “Nesse, o foco foi a questão do modelo de desenvolvimento e
a sustentabilidade, para problematizar a vinculação entre a agricultura
químico-dependente e os monocultivos para a exportação, que é um modelo
de desenvolvimento agrícola e pecuário que vem sendo imposto pela
divisão internacional do trabalho e pelo governo na medida em que o
Ministério da Agricultura o incorpora, financia e apoia, assim como o
legislativo”, aponta Raquel.
Intitulada ‘Agrotóxicos, conhecimento científico e popular: construindo a
ecologia de saberes’, a 3ª parte procurou problematizar o modo de fazer
ciência hegemônico que, segundo Raquel Rigotto, contribui para a
legitimação de um modelo agrícola calcado na intensa utilização dos
agrotóxicos, ao mesmo tempo em que escamoteia os agravos à saúde e ao
meio ambiente causados por ele. “Focamos o próprio conhecimento e
fizemos isso com uma reflexão sobre o paradigma epistemológico que
norteia a ciência moderna, que se por um lado trouxe vários avanços, por
outro contribuiu com o processo histórico do capital, com a dominação
da natureza, a exploração da força de trabalho”, pontua. O documento
também teve como preocupação central aliar conhecimento científico,
saber popular e militância política. Para isso foram convidados a
participar da sua elaboração membros da Campanha Permanente contra os
agrotóxicos e pela Vida e de entidades de fomento à agricultura
agroecológica, como a Articulação Nacional da Agroecologia (ANA). Além
disso, integram o dossiê 19 depoimentos e relatos escritos por
trabalhadores e comunidades que vivem diretamente os efeitos da
contaminação por agrotóxicos e as que estão construindo alternativas à
agricultura químico-dependente.
Teor e localização das pesquisas sobre agrotóxicos no Brasil
“A ideia do dossiê foi provocar uma reflexão crítica no campo da saúde
coletiva e levantar uma bandeira, de que a produção do conhecimento não é
neutra, a saúde coletiva tem de produzir conhecimento engajado que faça
avançar o projeto do Sistema Único Saúde (SUS) e seus princípios”, diz
André Burigo, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV/ Fiocruz), que participou da elaboração do
dossiê. Para dar conta de fornecer um panorama sobre a produção
científica acerca dos agrotóxicos no Brasil, a equipe do dossiê fez um
levantamento, com base na Plataforma Lattes, do número de pesquisadores
que possuem em seus currículos pesquisas sobre o tema, analisando também
o teor da pesquisa e a localização geográfica dos estudos. Segundo o
levantamento, dos mais de 158 mil currículos cadastrados na plataforma,
4.896 citaram o termo ‘agrotóxicos’ (ou variações como ‘defensivos
agrícolas’ e ‘pesticidas’), o que não é pouco, como ressalta o dossiê.
No entanto, o mapeamento mostra que os estudos “não têm abordado a
temática saúde e ambiente, que deveria ser de grande interesse, tanto
dos pesquisadores, das suas instituições e dos órgãos de fomento”.
Segundo o levantamento, dos currículos que mencionaram agrotóxicos,
apenas 4,6% citaram o termo toxicidade aguda e 5% citaram os efeitos
crônicos na saúde humana, como a toxicidade dos agrotóxicos para o
sistema nervoso, imunológico e endócrino, bem como sua capacidade de
provocar más formações fetais e alterações genéticas. Para André Burigo,
chama a atenção o fato de que a maioria da produção científica sobre
agrotóxicos em geral não foca as áreas de saúde pública e meio ambiente,
e se concentra na área da agronomia, “que de certa forma legitima o
modelo de agricultura convencional, dependente de agrotóxicos”. Ele
também chama atenção para a concentração sobre os estudos nas regiões
Sudeste e Sul do Brasil, presente em mais da metade dos currículos
identificados. “É provável que esses pesquisadores também estejam
estudando mais os impactos dos agrotóxicos nessas regiões. Há regiões do
Brasil completamente descobertas de produção de conhecimento dos
impactos dos agrotóxicos na saúde pública e no meio ambiente, como o
Norte e o Nordeste. De uma forma geral, há pouca pesquisa no Brasil como
um todo, mas essas regiões são muito mais descobertas, o que indica um
ocultamento ainda maior dos impactos dos agrotóxicos nesses lugares”,
analisa Burigo.
Contaminação da água
Segundo ele, a produção científica brasileira sobre agrotóxicos nas
áreas de saúde pública e meio ambiente que abordam o tema de maneira
mais crítica, embora escassas, como mostrou o levantamento na Plataforma
Lattes, já dão conta de evidenciar os riscos e agravos à saúde e ao
meio ambiente provocados pelos agrotóxicos e justificar uma maior
fiscalização e controle do poder público sobre a questão. Burigo
destaca, por exemplo, o estudo realizado no âmbito do Programa de
Análise de Resíduos de Agrotóxicos da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa), em 2011. “Contando as 20 culturas analisadas, apenas
37% das amostras não apresentaram resíduos de agrotóxicos”, conta.
Dados de pesquisas realizadas em locais com intensa utilização de
agrotóxicos, como a Chapada do Apodi, no Ceará, e a cidade de Lucas do
Rio Verde, em Mato Grosso, também apontaram a presença de resíduos de
agrotóxicos na chuva e na água sendo utilizada para consumo humano. Em
Lucas do Rio Verde, aponta o dossiê, a pulverização aérea de agrotóxicos
vinha sendo feita a menos de dez metros de fontes de água potável,
córregos e residências. Foram identificados resíduos de agrotóxicos em
83% dos poços de água potável das escolas, em 56% das amostras de chuva e
em 25% das amostras de ar, além de resíduos de vários tipos de
agrotóxicos em sedimentos de lagoas, “semelhantes”, afirma o dossiê,
“aos tipos de resíduos encontrados no sangue de sapos, sendo que a
incidência de malformação congênita nestes animais foi quatro vezes
maior do que na lagoa controle”. Em Lucas do Rio Verde também foram
realizadas pesquisas que mostraram a presença de resíduos de agrotóxicos
no leite materno. “Todas as amostras de leite materno de uma amostra de
sessenta e duas nutrizes de Lucas do Rio Verde apresentaram
contaminação com pelo menos um tipo de agrotóxico analisado. Os
resultados podem ser oriundos da exposição ocupacional, ambiental e
alimentar do processo produtivo da agricultura que expôs a população a
136 litros de agrotóxico por habitante na safra agrícola de 2010”.
Legalização da contaminação
Segundo o dossiê, paralelo ao aumento da contaminação do meio ambiente
pelos agrotóxicos – e também por resíduos industriais -, há um movimento
de legalização da contaminação pelo Estado brasileiro, como apontam,
por exemplo, as mudanças feitas ao longo do tempo nas normas de
potabilidade da água, que determinam a quantidade de resíduos de
agrotóxicos, substâncias químicas e solventes permitida na água para
consumo humano. Na primeira, de 1977, era permitida a presença de 12
tipos de agrotóxicos, de dez metais pesados, de nenhum solvente e de
nenhum produto químico de desinfecção domiciliar. Ao longo dos anos,
foram sendo emitidas novas portarias ampliando a quantidade permitida.
Na última portaria, emitida em 2011, é permitida a presença de 27 tipos
de agrotóxicos, de 15 produtos metais pesados, de 15 produtos solventes,
de sete produtos químicos de desinfecção domiciliar e o uso de
algicidas nos mananciais e estações de tratamentos. Isso, conclui o
dossiê, reflete, ao longo do tempo, “a crescente poluição do processo
produtivo industrial que utiliza metais pesados e solventes, do processo
agrícola que usa dezenas de agrotóxicos e fertilizantes químicos e da
poluição residencial que utiliza muitos produtos na desinfecção
doméstica. Esta ampliação pode levar a uma cultura de naturalização e
consequente banalização da contaminação, como se esta grave forma de
poluição fosse legalizada”. Como aponta André Burigo, o dossiê “mostra
que os alimentos que ingerimos estão contaminados, a água que bebemos
está contaminada e até o leite materno apresenta agrotóxicos. Isso
mostra que esse modelo de desenvolvimento agrícola esta colocando em
xeque o conceito de alimento, porque justamente os alimentos mais
importantes, cuja ingestão a saúde pública recomenda estão contaminados
por agrotóxicos”.
Intoxicações por agrotóxicos
O aumento na utilização destes venenos no Brasil reflete no crescimento
do número de intoxicações agudas por agrotóxicos registradas pelo
Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da
Saúde (MS): de 2.071 notificações em 2007, esse número passou para
3.466 em 2011, um aumento de 67,3%. Já o Sistema Nacional de Informações
Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) registrou, no ano de 2009, 5.253 casos
de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola um total de 188 óbitos
por estes quatro tipos de intoxicações registradas. “Há de se ressaltar
que existe um grande sub-registro das intoxicações por agrotóxicos no
Brasil. Esta é uma das grandes vulnerabilidades institucionais do país,
entre outras relacionadas ao controle e monitoramento do uso de
agrotóxicos em todo território nacional que é um aspecto a ser levado em
consideração nos processos de registro e reavaliação desses produtos”,
pontua o dossiê, que ainda afirma que existem muitas lacunas de
conhecimento quando se trata de avaliar a multiexposição ou a exposição
combinada de agrotóxicos. “A grande maioria dos modelos de avaliação de
risco servem apenas para analisar a exposição a um princípio ativo ou
produto formulado, enquanto que no mundo real as populações estão
expostas a mistura de produtos tóxicos cujos efeitos sinérgicos (ou de
potencialização) são desconhecidos ou não são levados em consideração”,
mostra o estudo. Segundo o dossiê, o SUS não tem contado com estímulos
políticos, técnicos e financeiros para implantar a vigilância da saúde
de populações expostas aos agrotóxicos. “O Ministério da Saúde discute
há cinco anos um Plano de Vigilância e Atenção a Saúde para populações
Expostas a Agrotóxicos e, até o momento, não conseguiu pactuar com
estados e municípios a forma e os recursos a serem direcionados para
implementar o mesmo. Será que essa questão não mereceria prioridade?”,
indaga.
Em sua conclusão, o dossiê cobra a elaboração de um Plano Nacional de
Enfrentamento ao Uso dos Agrotóxicos e Seus Impactos na Saúde e no
Ambiente, com bandeiras como: o banimento no Brasil dos agrotóxicos já
banidos em outros países; a proibição da pulverização aérea; o fim das
isenções fiscais para os agrotóxicos — já que as empresas que
comercializam e produzem os venenos recebem isenções, inclusive de
impostos que financiam a seguridade social (que inclui a Previdência
Social, Saúde e Assistência Social) como o PIS/Pasep e o COFINS; o fim
do crédito para os agrotóxicos; a reavaliação dos agrotóxicos
autorizados; a fiscalização das condições de trabalho das populações
expostas e dos danos ao meio ambiente, entre outras.
Acesse o Dossiê Abrasco: http://greco.ppgi.ufrj.br/DossieVirtual/
Reportagem de André Antunes, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), publicada pelo EcoDebate, 31/01/2013.
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