“Ficamos desolados com a constatação de que,
efetivamente, a Convenção 169 da OIT neste país é inoperante pelo alto grau de
obstruções que ela sofre”, diz o antropólogo.
Confira a entrevista.
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Foto: Telma Monteiro |
“Os Munduruku não querem guerra. Eles querem ser
consultados aberta e coletivamente e querem que sua opinião tenha poder
vinculante para a interrupção dessas obras”, diz Roani Valle à IHU On-Line, após visitar os
indígenas Munduruku contrários à construção do complexo hidrelétrico do
Tapajós, no Pará. O antropólogo esteve na aldeia Sawe Muybu no final de março e pôde
visualizar a atuação da Força Nacional de
Segurança na região. “Fiquei muito assustado com a
situação. Tinha conhecimento da Operação
Tapajós e sabia da tensão na área, só não imaginava tanto.
Presenciei uma incursão noturna na aldeia perpetrada por homens estranhos, não
identificados, fazendo algo semelhante ao que batedores fazem, observação
sub-reptícia, sondagem, espionagem furtiva; eles atracaram no porto da aldeia
por volta das 22h30 do dia 29 de março”, relata em entrevista concedida por
e-mail.
Segundo ele, 250 homens da Força Nacional de Segurança – FNS
encontram-se entre o Médio e o Alto Tapajós, mas somente 60 fazem a escolta dos
biólogos envolvidos com o EIA-Rima da hidrelétrica
de São Luiz do Tapajós. “Quanto aos outros 190 homens do
efetivo da FNS, que também estariam na região, as informações são controversas.
Há uma versão que afirma estarem estacionados no 53º Batalhão de Infantaria de
Selva, em Itaituba-PA, fazendo revezamento da escolta semanalmente; há outra
versão segundo a qual teriam se dirigido para a localidade de Machado, no
Mangabal, no local da segunda hidrelétrica do complexo, Jatobá, ou seja, a
operação não se restringiria à hidrelétrica de São Luiz do Tapajós; e ainda há
uma terceira versão que sustenta que esse contingente foi ou será direcionado
para o município de Jacareacanga-PA, na vizinhança imediata da terra indígena Munduruku”. E acrescenta: “Se essas informações estiverem
corretas, teriam ocupado postos estratégicos na área, não se tratando,
portanto, de um processo de militarização geograficamente pontual, mas que se
espalha regionalmente entre o Médio e Alto Tapajós, com um amplo perímetro
cercado”.
Roani Valle é doutor em Arqueologia e professor-adjunto no Programa de Antropologia
e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que contexto e por que acontece a
operação Tapajós em Itaituba, no oeste do Pará?
Roani Valle – Até onde me é possível entender, isso se dá no contexto de criar
garantias para a execução do complexo
hidrelétrico do Tapajós. Todos com quem converso – indígenas, movimentos
sociais, intelectuais, acadêmicos, organizações não governamentais etc. – batem
nesta mesma tecla.
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Foto: Fernanda Ligabue |
IHU On-Line – Qual a necessidade da presença militar
na região e quantos militares participam da operação?
Roani Valle – Até onde me é dado saber, real necessidade não há. Isso foi
desencadeado por arbitrariedades de não indígenas, governo e pesquisadores, que
não conduziram uma interlocução adequada com os indígenas e entraram nas áreas
de uso da aldeia sem a devida autorização. Nesse caso, eram os pesquisadores da
primeira fase do EIA-Rima biológico da hidrelétrica
São Luiz do Tapajós, que, ao serem flagrados dentro da área,
foram convidados a se retirar, pois estavam invadindo território indígena. Os Munduruku, até onde consegui
entender, tomam decisões coletivas, possuem um sistema político centralizado
que permeia cerca de 116 aldeias, e apenas querem uma coisa: serem consultados
no processo com antecedência da efetiva implantação do complexo hidrelétrico.
Não foram. Para o governo, penso que a presença militar se faz necessária para
reprimir qualquer possível reação do povo Munduruku contra a implementação do Complexo Hidrelétrico do Tapajós, em detrimento de um
processo de consulta correto, que se faz necessário. Fui informado que os
militares da Força Nacional de
Segurança – FNS encontram-se no momento entre o Médio e o Alto
Tapajós, com um efetivo de 250 homens. Também há participação do 53º Batalhão
de Infantaria de Selva do Exército, mas não sei quantos deles estão em área.
Justificativa
A Advocacia
Geral da União – AGU justifica a operação militar na região
como necessária para concluir o EIA-Rima da usina São Luiz do Tapajós ainda em
2013. As informações que me constam dizem que apenas 60 homens da FNS fazem a
escolta dos biólogos que estão envolvidos no EIA-Rima da hidroelétrica São Luiz do Tapajós.
Quanto aos outros 190 homens do efetivo da FNS, que também estariam na região,
as informações são controversas. Há uma versão que afirma estarem estacionados
no 53º Batalhão de Infantaria de Selva do em Itaituba-PA fazendo revezamento da escolta semanalmente;
há outra versão segundo a qual teriam se dirigido para a localidade de Machado, no Mangabal, no local da
segunda Hidrelétrica do Complexo, Jatobá,
ou seja, a operação não se restringiria à hidrelétrica de São Luiz do Tapajós;
e ainda há uma terceira versão que sustenta que esse contingente foi ou será
direcionado para o município de Jacareacanga-PA,
na vizinhança imediata da terra indígena Munduruku. Portanto, se essas informações estiverem
corretas, teriam ocupado postos estratégicos na área, não se tratando,
portanto, de um processo de militarização geograficamente pontual, mas que se
espalha regionalmente entre o Médio e Alto Tapajós, com um amplo perímetro
cercado.
IHU On-Line – A presença militar na região gerou
algum conflito?
Roani Valle – Conflitos diretos, propriamente ditos, nenhum até o momento. Mas a
tensão e o medo que eu testemunhei na área é grande, e pode escalonar para uma
conjuntura mais crítica, dependendo das decisões que o governo federal tomar de
agora em diante (lembremos do que ocorreu em Teles Pires meses
atrás). A permanência na atual situação é insustentável. A mensagem entendida é
que haverá uma consulta pública pela força das armas da FNS e do BIS. Queremos todos evitar a
repetição do conflito de Teles Pires em novembro de 2012, o que é absolutamente
indesejável. Entre a flecha e o fuzil há completa consciência de quem sai perdendo,
e os Munduruku sabem
disso. A meu ver, não haverá confronto nesses termos, porque a luta é jurídica
sobretudo pela legalidade do processo. Os Munduruku não querem guerra. Eles
querem ser consultados aberta e coletivamente e que sua opinião tenha poder
vinculante para a interrupção dessas obras.
Quem está decidindo por um conflito, com implicações
talvez genocidas que se avizinha toda vez que um fuzil FAL, AR 15
ou HK 33 é apontado para uma flecha, é o governo brasileiro. Isso porque não se
trata de guerra stricto sensu, que se dá entre exércitos formais de estados
nacionais. Ao primeiramente criar conflitos socioambientais e, posteriormente,
militarizá-los no intuito resolutivo, reprimindo as reações de parcela
considerável da sociedade brasileira, que se encontra privada de recursos
naturais indispensáveis à sua sobrevivência, o governo brasileiro promove a escalada
no terror, na violência psicológica e na insegurança alimentar. Nesse sentido,
é possível falarmos num escalonamento para uma guerra de baixa intensidade em
instalação ou já instalada.
Esta doutrina militar desenvolvida em Washington nos
anos 1970 envolve terror, humilhação, coerção, ameaça, supressão de acesso a
recursos naturais e dos próprios recursos, controle da acessibilidade e
deslocamento físico-espacial, supressão informacional e conflitos armados
sub-reptícios, camuflados (como o de operações para coibição de crimes
ambientais), pontuais e rápidos com ações localizadas e orientados para obterem
o máximo de impacto emocional e simbólico em suas vítimas, é covarde mas
extremamente eficiente. Nesse caso, repito, um possível conflito armado seria
apenas de um lado, pois apenas um lado tem armas. E reitero: a natureza do que
parece se avizinhar é melhor caracterizável na versão mais branda como uma
guerra de baixa intensidade de curta duração e, na pior das hipóteses, como um
genocídio em médio prazo. Esta palavra é horrorosa e causa calafrios. Mas
infelizmente o que podemos pensar se a relação fuzil X flecha se tornar lugar
comum na resolução de problemas socioambientais?
IHU On-Line – O senhor visitou recentemente a aldeia
dos Munduruku. O que pode observar nessa visita?
Roani Valle – Conduzo um projeto de arqueologia colaborativa com professores
indígenas Munduruku nas aldeias Munduruku
do médio Tapajós, e visitei a aldeia Sawre Muybu entre os dias 29 e 30 de
março. Fiquei muito assustado com a situação. Tinha conhecimento da operação
Tapajós e sabia da tensão na área, só não imaginava tanto. Presenciei uma
incursão noturna na aldeia perpetrada por homens estranhos, não identificados,
fazendo algo semelhante ao que batedores fazem, observação sub-reptícia,
sondagem, espionagem furtiva; eles atracaram no porto da aldeia por volta das
22h30 do dia 29 de março (com o gerador de energia ligado não é possível ouvir
aproximação de embarcação motorizada), portanto, supomos que tenham se
esgueirado pela trilha que leva até a aldeia e iluminaram com lanterna uma das
casas, o que assustou os moradores desta residência, que deram o alerta geral
imediatamente.
Os Munduruku são habilidosos caçadores acostumados a rastrear
caça na floresta à noite e, ao perceberem a aproximação, foram ao encalço dos
invasores que se evadiram rapidamente. Houve, de fato, uma tentativa de invasão
do perímetro doméstico da aldeia por elementos desconhecidos. Identificamos
marcas de voadeira e de botas numa área adjacente ao porto da aldeia, o que nos
sugeriu se tratar de uma incursão furtiva de militares. Mas não podemos provar
tal fato, com as evidências encontradas. Independentemente disso, o medo e o
terror foram grandes na aldeia e na noite de 29 para 30 de março ninguém
dormiu. As pessoas, principalmente crianças e idosos, passaram muito mal, houve
desfalecimentos, choro e desespero infantil. Somando-se a isso as incursões da
aeronave militar sobre a aldeia nos dias 26 e 27 de março, relatadas pelas
pessoas, em que um helicóptero militar ficou parado acima do campo de futebol
da aldeia, dando voltas ao redor do perímetro por 30 minutos, enquanto dezenas
de voadeiras apinhadas de militares passavam, não por acaso, em frente à aldeia
pelo rio (no dia 26).
Entende-se bem a medida do terror que aquelas pessoas
passaram entre 26 e 30 de março de 2013. Um fato relevante constatado é que
todas as atividades produtivas (caça, pesca, agricultura, produção de farinha)
estavam paralizadas ou reduzidas a níveis insuficientes para atender às
demandas de sobrevivência da aldeia, em função do estado de medo lá instaurado,
gerando uma situação de insegurança alimentar preocupante. Todos temiam Teles Pires e sua semiótica da morte,
o helicóptero e a incursão furtiva noturna reimplantaram as memórias
aterrorizantes daquela situação nos Munduruku desta aldeia, neles e em nós não
indígenas. Estamos todos nós traumatizados.
IHU On-Line – De acordo com o Ministério Público
Federal, os Munduruku não aceitam estudos para usinas em suas terras enquanto
não for feita a consulta prévia que a Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho obriga. Como essa questão tem sido discutida entre os envolvidos?
Roani Valle – Os indígenas têm muita clareza do que pesa sobre eles e de seus
direitos; sabem que a convenção n. 169
da OIT, embora no papel
tenha sido assinado pelo Brasil desde 2004, na prática não tem tido efeito: não
há precedente para ela, não há jurisprudência em solo brasileiro para tal
dispositivo internacionalmente aplicado. O que há é uma série de dispositivos
instituídos como a Portaria n. 303,
a PEC 215, a presidência da comissão de meio ambiente do
senado brasileiro na mão do maior sojeiro do país, e mais recentemente o
decreto n. 7.957-2013, que institui o Gabinete Permanente de Gestão Integrada
para a proteção do Meio Ambiente e regulamenta a atuação das forças armadas na
proteção ambiental. Na prática, isso parece se reduzir à militarização de todas
as questões socioambientais no Brasil. Com base nisso, ficamos desolados com a
constatação de que, efetivamente, a
convenção n. 169 neste país é inoperante pelo alto grau de
obstruções que ela sofre. Não é aplicada na atual conjuntura por se tratar, em
meu entendimento, de um “mal negócio” para o grande capital (inter) nacional
que atua ostensivamente por trás e pela frente das hidroelétricas amazônicas, e
do grande projeto nacional de desenvolvimento.
IHU On-Line – Quais as maiores dificuldades no
diálogo entre os Munduruku e representantes do governo federal?
Roani Valle – Poderíamos atalhar uma resposta para essa questão por diversos
caminhos, mas ontologicamente, em sua essência, acredito que representam
projetos de existência humana, que se antagonizam por escolha deliberada de um
dos projetos. O modelo do governo brasileiro, e da agenda internacional ao qual
se submete, é predatório, baseado na acumulação e no consumo industrial de bens
e comportamentos insustentáveis para a biosfera planetária em curto prazo. Os Munduruku representam uma filosofia humana milenar em
quasi-estase socioambiental com os ecossistemas amazônicos. A meu ver, são
sistemas cognitivo-epistemológicos incompatíveis e em competição pela mesma
parcela de recursos naturais.
Fenômenos como esse já se repetiram outras vezes na
história da ecologia humana desde a especiação de homo sapiens sapiens na
África há 200.000 anos. Somos a única espécie de nosso gênero viva nos últimos
25 mil anos. Uma anomalia biológica. Por que será? Mas não se trata de
relativizar através de reducionismos biológicos os conflitos humanos; trata-se
de uma guerra (em sentido amplo) entre cosmovisões que já dura 513 anos, cujo
aspecto interexcludente é artificial, é uma construção cultural, política e
econômica, mas não uma inevitabilidade. Enquanto a inexorabilidade do processo
de construção das hidroelétricas for defendida – uma invenção perversa da
criatividade humana perseguindo um caminho deliberadamente equivocado
embriagado por uma cegueira simbólica, cognitiva –, e o governo atuar
unilateralmente em
territórios Munduruku,
com presença militar ostensiva, o diálogo será no mínimo reduzido a trocas de
acusações. Em meu entendimento, desde que tenham sua terra e seu rio, os
Munduruku conseguem sobreviver neste mundo quase tranquilamente. O problema
somos nós, ou melhor, o Estado brasileiro e suas ramificações determinantes
extranacionais.
IHU On-Line – Em encontro com os Munduruku, Gilberto
Carvalho disse que o complexo de Teles Pires é necessário. De fato é?
Roani Valle – Não sou especialista no tema, mas é possível que isso se encaixe na
mesma falácia de inexorabilidade desenvolvimentista acima mencionada. Não é,
não foi e nunca será a única alternativa. Não existe um único caminho na vida,
nos processos vitais. Afirmar isso em termos culturais é uma falácia
equivalente; inevitabilidade é uma falácia biológico-cultural e filosófica.
Outro processo questionável é a irreversibilidade quando coadunado à inexorabilidade
nas escolhas humanas. Nesse nível ambos os argumentos, quando operam juntos,
são falaciosos, embora a irreversibilidade exista no mundo físico e, portanto,
biológico-cultural, pois se trata de uma propriedade da matéria, em seu
conceito físico, um estado, ou condição, possível de existência das coisas, dos
sistemas e de seus processos transformativos. Atingi-la, porém, é relativamente
raro.
Processos irreversíveis são normalmente de magnitude
catastrófica, erupções vulcânicas, impactos de meteoro e hidroelétricas, por
exemplo, têm essa capacidade de afetarem processos ecossistêmicos em níveis
irreversíveis. A diferença em relação às duas primeiras catástrofes é que não
as escolhemos. Portanto, não se trata de necessidade como condição sine qua non,
pois há uma escolha política muito explícita nisso. Não é necessário para o
Brasil, é escolhido para o Brasil, para desempenhar um papel instrumental de
fornecedor de matérias-primas baratas (energia), porém de alto custo social e
ambiental, num mundo em que não temos autonomia muito menos hegemonia (esta
segunda totalmente dispensável). Assustadora é a ausência de debate qualificado
na população brasileira, em todas as classes e níveis de instrução, e sua
complacência e adesão generalizada a essa alucinação coletiva de
inexorabilidade desenvolvimentista.
IHU On-Line – Quais as implicações da construção da
hidrelétrica São Luiz do Tapajós para os indígenas Munduruku?
Roani Valle – Existem várias possibilidades, todas preocupantes. Num cenário
extremo, porém realista e plausível, podemos falar em extermínio no médio prazo
por supressão de recursos naturais como uma delas, além de insegurança
alimentar e fome. Se houver ação militar mais incisiva e continuada decorrendo
em conflito aberto, então pode-se pensar em morte física de um contingente
populacional de maneira mais rápida. Por fim, um cenário de genocídio, isto é,
sensu stricto, extermínio de uma linhagem genética específica de homo sapiens
sapiens ou redução significativa e perigosa de sua variabilidade genética
(efeito de gargalo), pode ser ventilado como possibilidade derivada das outras.
Pode-se pensar em outro cenário extremo, porém
plausível, mas com menos morte física, ou seja, um grande contingente
populacional indígena sendo obrigado a adotar um padrão de vida alienígena, um
padrão de vida semelhante ao da parcela da sociedade nacional não indígena mais
pobre. Sem autonomia em recursos de sobrevivência econômico-social sofrem um
processo de mudança cultural rápida e profunda, descaracterização de padrões
socioambientais, simbólicos, linguísticos, filosóficos “tradicionais” Em outras
palavras, etnocídio pode ser outro processo menos extremo que o genocídio, mas não menos terrível como preço a ser pago
pelo atual modelo desenvolvimentista.
Fato é que a mudança ambiental abrupta e profunda
terá um efeito catastrófico para a adaptabilidade humana tapajônica (amazônica)
e, nesse caso, a irreversibilidade não é falaciosa, é real e imposta. Eventos
de extinção biocultural são plausíveis. Se são implantados do jeito que estão
sendo planejados e praticados, esses dois cenários tenebrosos são factíveis em
médio prazo. Mas, como cientista, não acredito em inexorabilidade, e tenho
pouca fé na irreversibilidade banalizada. Portanto, é possível construirmos
outro caminho. Os povos indígenas nas Américas, em boa parte dos casos – e aqui
na Amazônia não é diferente –, passaram a maior parte dos últimos 20.000 anos
(e essa é uma visão arqueologicamente conservadora) fazendo isso, construindo
simultaneamente múltiplas possibilidades desenvolvimentistas.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Roani Valle – Quero retomar o ponto do engajamento coletivo da sociedade brasileira
nessa alucinação coletiva de inexorabilidade desenvolvimentista. É possível que
o fenômeno “Lula” tenha
sido um fator causal dessa homogeneização. Me pego pensando se, em certo
sentido, este fenômeno não representou uma sofisticação na tecnologia de
controle social, político e emocional do sistema capitalista internacional.
Teria sido, portanto, mais do que uma concessão do sistema, foi realmente um
salto evolutivo dentro da biotecnosfera do capital. Um exemplo político-cultural
de punctuated equilibria, em
que se opera uma microrrevolução, abrupta, intensa e pontual nos mecanismos de
dominação e poder, depois do que se segue uma reestabilização controladora
amplificada, o atual governo.
Ou podemos pensar numa espécie de exaptação política,
em que uma brilhante mente articuladora popular e sindical se torna uma
ferramenta valiosa e sofisticada de controle social e ideológico do capital,
como a caneta que serve para escrever mas pode servir para rebobinar fitas cassetes,
ou prender cabelos.
Seja de uma forma ou de outra, resulta na preparação
do terreno para um novo processo de expansão do sistema, uma nova geração dos
mecanismos de controle e dominação. Um exemplo tão bem sucedido que a segunda
maior força capitalista da Terra representada num estado nacional, os EUA, tentaria replicar uma
experiência semelhante, adaptada a sua conjuntura específica, com o fenômeno Obama. Mas isso é apenas uma
especulação de que esses dois processos representariam uma homologia política.
Fato é que estamos vivendo tempos difíceis, sobretudo
para os povos indígenas e populações tradicionais, e pode piorar. Mas são
escolhas. E escolhas não são inexoráveis por natureza; algumas podem ser
irreversíveis, como é o caso das hidroelétricas. Terríveis irreversibilidades escolhidas por
poucos e impostas a muitos com o argumento falacioso da inevitabilidade
desenvolvimentista necessária.
Originalmente
publicado no site do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, 07/04/2013.