por Ricardo Abramovay*
É difícil encontrar
problema contemporâneo mais importante que o resultante dos 14 maiores
projetos de exploração de carvão, petróleo e gás pelo mundo afora. Por
um lado, cada um deles representa uma bênção a seus países de origem,
oferecendo horizonte palpável de solução para a dependência energética
(caso dos EUA), para a pobreza (caso da China) ou para a educação (caso
do Brasil).
Mas, quando se somam essas iniciativas, a bênção se converte em maldição: estudo recente divulgado pelo Greenpeace mostra
que a queima adicional de combustíveis fósseis decorrente apenas dessas
14 iniciativas vai lançar na atmosfera, em 2020, o correspondente a
tudo o que os EUA emitem hoje em gases de efeito estufa.
Como a exploração de combustíveis fósseis exige pesada estrutura de
instalação e de distribuição (minas, poços, oleodutos, gasodutos, postos
de gasolina), isso significa que esses 14 projetos colocam a humanidade
num “ponto de não retorno” (título do trabalho do Greenpeace) com
relação às mudanças climáticas.
A dimensão física do sistema de energia baseado em fósseis já é
gigantesca. Ela se amplia a cada investimento adicional em carvão,
petróleo e gás. Entre 2000 e 2008, por exemplo, a China investiu nada
menos de US$ 300 bilhões em novas minas de carvão. A amortização desses
investimentos só vai acontecer entre 2030 e 2040. Essas instalações
continuarão funcionando até 2060, segundo um importante relatório das
Nações Unidas. Investimentos em fósseis têm um impacto sobre a vida
social que se prolonga por décadas.
O resultado é aterrador: seis graus de elevação da temperatura global
média até o final do século. É bom lembrar a convergência crescente
entre os governos, as organizações multilaterais, a sociedade civil, o
número crescente de empresas e a esmagadora maioria da comunidade
científica de que o aquecimento derivado da emissão de gases de efeito
estufa não deveria ir além de dois graus. O rumo atual é três vezes
superior ao limite mencionado quase exaustivamente em conferências e
documentos internacionais.
É verdade que novas tecnologias permitem obter combustíveis fósseis cuja
exploração até recentemente era inviável: é o caso do gás de xisto e do
pré-sal. Não é menos certo que essa exploração pode trazer benefícios
econômicos, sociais e até geopolíticos fundamentais. É possível até que
as ameaças ambientais desses projetos não sejam tão grandes quanto o
habitualmente alardeado. Na maior parte dos casos, eles são acompanhados
de promessas relativas à captação e à armazenagem de carbono ou à
garantia de que os conhecimentos atuais impedirão que se repitam
tragédias como a que atingiu o Golfo do México em 2010.
Nada disso, entretanto, elimina o mais importante e que, sobretudo no
caso pré-sal brasileiro, não tem ocupado lugar devido no debate público:
aumentar nessa proporção o uso de combustíveis fósseis coloca o
conjunto da sociedade numa rota cujos perigos são apenas prenunciados
pelo furacão Sandy, pelos incêndios florestais na Rússia, em 2010, ou
pelo ciclone que chegou a Santa Catarina poucos anos atrás.
No mundo todo, crescem os investimentos em energias renováveis e em
tecnologias explicitamente voltadas a reduzir as emissões de gases de
efeito estufa. Alguns dias após a divulgação do relatório do Greenpeace,
a Bloomberg e o Business Council for Sustainable Energy ] publicaram um
estudo que mostra o declínio das fontes tradicionais de energia nos
Estados Unidos e uma elevação muito expressiva da participação do gás
(que é fóssil, mas não tão sujo quanto o carvão e o petróleo) e de
renováveis na matriz energética do país.
O trabalho enfatiza também os ganhos de eficiência no uso da energia por
parte da indústria e dos domicílios. Um avanço certamente fundamental
que justifica a afirmação: “Uma revolução está transformando a maneira
como os americanos produzem, consomem e pensam sobre energia”. Esse
avanço, entretanto, corre o risco de ser ofuscado pelo estrago advindo
da oferta adicional de combustíveis fósseis em diferentes países,
mencionados e quantificados no trabalho do Greenpeace.
Em vez simplesmente de surfar na onda do atraso representada por esses
investimentos, o Brasil teria muito mais a ganhar caso consolidasse sua
matriz energética menos dependente de fósseis que o resto do mundo, mas,
ao mesmo tempo, se liderasse uma discussão global cujo ponto de partida
só pode ser a pergunta: qual a quantidade de gases de efeito estufa que
a economia mundial ainda pode emitir para que haja chance de não
ultrapassar o limite de dois graus?
Em 2012, a Agência Internacional de Energia respondeu a essa pergunta
com toda a clareza em seu World Energy Outlook]: se a civilização tiver
prioridade diante da renda dos combustíveis fósseis, não mais que 30%
das reservas hoje conhecidas poderão ser exploradas.
O problema é que a viabilidade econômica dessas explorações é
incompatível com esse limite. Além disso, como a decisão referente a
esses investimentos não é tomada levando em conta seus efeitos globais,
cada país, cada empresa dá as costas aos evidentes impactos destrutivos
desses projetos e age como se a oferta de combustíveis fósseis e o
aquecimento global fossem dois temas independentes um do outro.
Não é sensato que o caminho para a redenção social, para a independência
energética ou para qualquer outro objetivo relevante tenha como
contrapartida a tão grande ampliação dos riscos a que a miopia dos
governos e a ambição das empresas petrolíferas estão expondo a espécie
humana.
* Ricardo Abramovay é professor titular da FEA e do IRI-USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp, e autor deMuito Além da Economia Verde, lançado na Rio+20 pela Editora Planeta Sustentável.
** Publicado originalmente no site Prêmio Empreendedor Social/Folha de S.Paulo. e republicado no site Envolverde, 06/02/2013.
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