quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

ISA solicita declaração de inviabilidade de projeto de mineração na região do Xingu

por Redação do Institudo SocioAmbiental

Na última quarta-feira (23), o Instituto Socioambiental protocolou parecer técnico junto à Secretaria do Meio Ambiente do Pará solicitando a declaração da inviabilidade do projeto da mineradora Belo Sun, de instalar mineração de ouro na região da Volta Grande do Rio Xingu. O documento explica porque a área onde o Rio Xingu terá significativa redução da vazão não pode ter, além da terceira maior hidrelétrica do mundo, outro mega empreendimento licenciado.

O documento foi encaminhado pelo ISA à Secretaria do Meio Ambiente (Sema) do Pará e solicita que o órgão suspenda o processo de licenciamento do projeto da mineradora canadense Belo Sun (veja quadro no final do texto). Além disso, também pede que caso a Sema prossiga o processo, o Ministério Público Federal solicite sua federalização, já que há afetação direta aos povos indígenas da região.“O EIA apresentado é defeituoso, mas independentemente da qualidade do estudo, ele não tem como realizar uma avaliação tecnicamente embasada a respeito dos impactos sobre o meio, dada a grande transformação pela qual a Volta Grande deverá passar. Por isso, esperamos que a própria Sema conclua pela inviabilidade socioambiental do projeto”, afirma o advogado Leonardo Amorim, do ISA.

Duas audiências públicas para discutir a implantação do Projeto Volta Grande já foram realizadas no município de Senador José Porfírio, onde será explorada a jazida. Os encontros foram marcados pela Secretaria do Meio Ambiente (Sema) do Pará e a empresa canadense Belo Sun Mining, que pretende instalar na Volta Grande o programa de exploração de ouro.
Audiência pública em Senador José Porfírio para explicar o projeto
O Instituto Socioambiental analisou os documentos de licenciamento do projeto e destaca dois principais problemas: a desconsideração das alterações ambientais provocadas por Belo Monte exatamente na área na qual se pretende instalar a mineradora, e a insuficiência da análise de impactos sobre os povos indígenas da região. “A população da Volta Grande do Xingu já convive hoje com as incertezas sobre os impactos da vazão reduzida do rio, fruto da construção de Belo Monte. Não é possível que, além disso, eles tenham que conviver com a instalação de uma grande mineradora e com o risco iminente de qualquer acidente de contaminação em um ambiente já fragilizado. Que tipo de situação extrema o Estado brasileiro está disposto a impor aos indígenas e ribeirinhos do Rio Xingu em troca de energia e ouro para empresas privadas?”, questiona a advogada Biviany Rojas, do ISA.
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O órgão licenciador reconhece a existência de impactos, mas assume, expressamente, a incerteza sobre sua dimensão, e, por isso, a Norte Energia (concessionária responsável pela construção da UH Belo Monte) e o Ibama terão de realizar monitoramentos durante anos para diagnosticar os impactos reais sobre a Volta Grande e seus povos. Tais monitoramentos poderão, inclusive, fundamentar readequações das licenças ambientais da usina hidrelétrica.

O parecer elaborado pelo ISA alerta que é impossível realizar previsão de impactos do projeto de mineração em meio a um ambiente que não se sabe como vai se comportar no futuro próximo. Nem a Norte Energia, nem os afetados (como índios e pescadores), nem os especialistas e os órgãos públicos responsáveis sabem quais serão os impactos exatos de Belo Monte na área da Volta Grande.

A mineradora Belo Sun submeteu seus estudos com a pretensão de instalar o empreendimento a aproximadamente 10 km de distância da barragem principal de Belo Monte e a 9,5 km da Terra Indígena (TI) Paquiçamba. Em 11 anos de exploração, a Belo Sun deve revirar 37,80 milhões de toneladas de minério.

Impactos sobre TIs serão diretos

Para executar o projeto, a empresa encaminhou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) à Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará em fevereiro do ano passado. Segundo o estudo, o projeto não teria impacto relevante no leito do Rio Xingu e nem impactos diretos sobre os povos indígenas da TI Paquiçamba e da TI Arara da Volta Grande.

Mesmo estando localizada na mesma região que a hidrelétrica de Belo Monte, e com evidentes impactos cumulativos e sinérgicos, o projeto de mineração está sendo licenciado pela Sema, o órgão ambiental estadual, enquanto a hidrelétrica é licenciada pelo Ibama, o órgão ambiental federal. “Empreendimento que afeta terras indígenas deve ser licenciado pelo Ibama. Isso é ainda mais necessário quando o novo empreendimento, de alto impacto, tem interações diretas com a obra que alterará completamente as condições do meio”, avalia o advogado do ISA, Leonardo Amorim.

Para o advogado Raul do Valle, coordenador do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA, o impacto nas Terras Indígenas (TIs) é direto. “É claro que há impacto, como acontece em Belo Monte. E ocorrerá não só porque o local de escavação é próximo às TIs onde haverá forte mobilização de homens e máquinas, mas, sobretudo, porque essas terras já vão sofrer com a limitação dos recursos hídricos após a construção da barragem”.

O projeto da Belo Sun

A Belo Sun Mineração Ltda. é subsidiária brasileira da canadense Belo Sun Mining Corporation, pertencente ao grupo Forbes & Manhattan Inc. O grupo recebeu autorização para pesquisa mineral na região da Volta Grande do Xingu do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM, autorizações sob os números 805.657/76, 805.658/76, 805.659/76 e 812.559/76), após diversas empresas terem realizado pesquisas na área, ao longo das três últimas décadas, sem, no entanto efetivar a exploração dos minérios. Entre essas empresas, se destaca a EBX, de propriedade do empresário Eike Batista.

A lavra do ouro nas margens do rio Xingu será feita a céu aberto, porque se trata de uma jazida próxima à superfície. A previsão é de que a exploração avance por até 20 anos. Pelos cálculos da Belo Sun, haverá 2,1 mil empregados, próprios e terceirizados, no pico das obras, mas sem avaliação dos impactos cumulativos e sinérgicos com o aumento populacional promovido por Belo Monte. A exploração efetiva do ouro começaria no primeiro trimestre de 2015. A companhia listou 21 programas socioambientais para mitigar os impactos que serão causados à região e à vida da população de forma totalmente desarticulada dos planos, programas e projetos previstos por Belo Monte para a mesma área e população.

Publicado originalmente no site Instituto SocioAmbiental e republicado pelo site da Agência Envolverde, 29/01/2013.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

É o CO2, Dilma! artigo de Alexandre Costa

Publicado em janeiro 28, 2013 por 

É o CO2, Dilma!
“Nosso parque térmico, que utiliza gás, diesel, carvão e biomassa foi concebido com a capacidade de compensar os períodos de nível baixo de água nos reservatórios das hidrelétricas. Praticamente todos os anos as térmicas são acionadas, com menor ou maior exigência, e garantem, com tranquilidade, o suprimento. Isso é usual, normal, seguro e correto. Não há maiores riscos ou inquietações.” (ROUSSEFF, D., 2013, em pronunciamento público)

Errado, presidenta! Utilizar combustíveis fósseis não pode ser considerado “normal”, “seguro”, nem “correto”. Cada molécula extra de CO2 adicionada à atmosfera, elevando a já insegura concentração de 394 ppm amplia o “risco” climático e deveria, da parte de qualquer governante sensato deste mundo, despertar “inquietação”.
Termelétricas são “solução” de FHC.
Defensores incondicionais do
Governo Dilma deveriam lembrar
desse “detalhe”.
Claro, é fundamental colocarmos em contexto. Em 2001, o Brasil foi surpreendido por uma crise energética que veio a ficar conhecida como “Crise do Apagão”. No final do ano anterior, isto é, em 2000, a situação dos reservatórios hidrelétricos, principal fonte de geração elétrica no País, era precária. Foi adotado um racionamento de energia, medida típica de uma condição não apenas emergencial, mas que denunciava falta de planejamento e irresponsabilidade histórica. Havia ficado claro que a falta de investimento no setor, parte da política de privatização da era FHC, havia deixado o Brasil em situação bastante vulnerável.

No entanto, a “saída” emergencial de FHC e que posteriormente proliferou nos governos petistas foi a pior possível: a combinação do incentivo às termelétricas a óleo diesel, carvão e gás natural com a retomada dos projetos dos tempos dos militares, de grandes hidrelétricas na Amazônia (estas últimas tem custo sócio-ambiental enorme, sendo que um bom resumo das críticas de especialistas particularmente a Belo Monte é apresentada pelo Portal Ecodebate, num artigo em que há links para os documentos completos que foram elaborados, mas não serão o nosso foco neste texto). O que é realmente constrangedor é que o Brasil esteja retroagindo várias décadas no que diz respeito à composição de sua matriz energética, com o aumento substancial do uso de combustíveis fósseis!

decreto que criou o chamado “Programa Prioritário de Termeletricidade”, foi assinado por FHC, no início de 2000. É absolutamente sucinto e não faz nenhuma menção à questão das emissões. 13 anos depois (simbólico, o número), Dilma se une a FHC e silencia, da mesma forma, sobre a questão climática. As emissões das térmicas somente em Janeiro podem ultrapassar 5 milhões de toneladas de CO2. O Brasil, que já tem tido dificuldade em cortar emissões de sua principal fonte, o desmatamento, o que deveria ser bem mais fácil, vê agora o crescimento não apenas das emissões de transporte, mas também das do setor energético.

Além do “silêncio climático”, vários outros aspectos têm sido omitidos, em relação ao uso das térmicas. O primeiro deles é que, além do CO2, há outras emissões, incluindo material particulado e óxidos de enxofre, particularmente no caso de térmicas a carvão. Impactos nocivos adicionais sobre o ambiente (incluindo chuva ácida) e a saúde humana se sobrepõem aos danos ao sistema climático. O segundo, é que uma série de insumos são necessários, com destaque para a água. Isso mesmo! Termelétricas precisam ser resfriadas e utilizam quantidades colossais de água dos reservatórios do País. Em alguns casos, como no Estado do Ceará, chega-se ao absurdo de subsidiar a água para as térmicas (no porto do Pecém, uma termelétrica, de propriedade do Sr. Eike Batista, recebe água bruta por metade do preço).
Ao invés do apagão energético, o apagão mental
O pronunciamento da Presidenta foi efusivamente saudado por apoiadores. O discurso presidencial, bem como as referências a ele (principalmente pelo anúncio da redução da tarifa, mas esquecendo do contexto geral) foram feitos num tom absolutamente ufanista. É algo estranho quando o que se descreve na frase que citei nada mais é do que o falso êxito de uma saída paliativa, herdada do fiasco de um governo anterior, de facção rival.

A verdade é que é lamentável que a Presidenta, em 2013, quando é necessário e possível que o Brasil assuma um papel de liderança nas negociações climáticas, simplesmente ignore o impacto dessa forma de utilização de energia sobre o clima do planeta. Esqueceu, inclusive de como o clima afeta nossa principal fonte energética, as hidrelétricas, pois os reservatórios hidrelétricos podem ser afetados por mudanças no regime de precipitação (algo sobre o quê há muitas incertezas), pelo aumento de temperatura (este bem estabelecido no contexto do aquecimento global) e pelo consumo (que, diga-se de passagem, inclui uso massivo para refrigeração, que pressiona fortemente o sistema elétrico durante o verão).

Além disso, é também lamentável que as fontes renováveis tenham sido esquecidas em seu discurso e que a possibilidade de se usar energia solar para geração em escala doméstica (o que pode zerar a conta de energia ou até servir como fonte de renda para famílias mais pobres) não esteja sendo considerada pelo Governo Federal, o que representaria um impacto muito mais significativo do que a redução de 18% na tarifa. Para os que repetem o defasado mantra de que a “energia solar é cara”, informo que hoje em dia esta dispensa o uso de baterias (que ocupavam espaço, aumentavam o custo e impunham manutenção) e que essa tecnologia já é acessível, vide a iniciativa tomada em minha própria instituição. O uso generalizado em prédios públicos, o subsídio para famílias de baixa renda e linhas de crédito para as camadas médias poderiam levar, em questão de poucos anos, a uma participação significativa da energia solar em nossa matriz energética.

O Brasil pode ser, sim, uma grande potência energética, mas sobretudo pode ser um exemplo de como os combustíveis fósseis podem ficar para trás! Se protegermos nossas florestas e zerarmos o desmatamento; se utilizarmos nosso grande potencial solar, eólico, de ondas e maremotriz salvaguardando os reservatórios hidrelétricos; enfim, se recusarmos a exploração do petróleo da camada do pré-sal, o Brasil poderá estar na vanguarda das negociações climáticas, e será reconhecido historicamente pelo seu compromisso com as futuras gerações.

Alexandre Costa, Fortaleza, Ceará, Brazil, é Ph.D. em Ciências Atmosféricas, Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará.

Artigo indicado pelo Autor e originalmente publicado em seu blogue pessoal [O que você faria se soubesse o que eu sei?] e republicado pelo EcoDebate, 28/01/2013

Pequeno tratado do decrescimento sereno


(de LATOUCHE, Serge - São Paulo: Editora WMF, 2009)

Felipe E. Rodríguez Arancibia (1)

Decrescimento, a realização de uma utopia

Serge Latouche, professor emérito de economia na Universidade de Paris-Sud XI, é um objetor do crescimento. Esse livro foi escrito a partir da ideia de produzir um compêndio das análises já disponíveis sobre o decrescimento.

Dando continuidade à analise que realizou em Survivre au développement e, depois, em Le Pari de la decroissance, o autor integra novas reflexões, em particular os debates realizados pela revista Entropia. É, portanto, uma ferramenta de trabalho útil para estudantes, cientistas, gestores e participantes de movimentos sociais ou políticos, em particular, do plano local ou regional.

Nicholas Georgescu-Roegen (The Entropy Law and the Economic Process, 1971) é precursor da chamada bioeconomia. Preocupado com a sobrevivência da vida na Terra, foi uns dos primeiros em evidenciar a relação entre a lei da entropia e os processos econômicos. Mais tarde, estabelece o termo decrescimento (La décroissance: Entropie – Écologie – Économie, 1975), como um processo inevitável para um desenvolvimento realmente sustentável. Logo, Herman Daly (Steady-State Economics, 1977), por sua vez, propôs a necessidade de defender a transição da economia para um "estado estacionário", no qual a escala da produção não excedesse a capacidade natural de suporte dos ecossistemas. Para Daly, isso implica numa mudança de foco da politica econômica, visando um desenvolvimento sustentável (Beyond Growth: The economics of sustainable development, 1996). Já recentemente, autores como Jean-Claude Besson-Girad (Decrescendo Cantabile: Petit Manuel pour une décroissance harmonique, 2005) e Paul Aries (Décroissance ou barbárie, 2005) trazem a discussão do decrescimento como uma proposta concreta para uma mudança civilizacional, em resposta à crise social, politica, econômica e ecológica. Nesse âmbito, Latouche hoje é referência. Seu trabalho vem precedido por uma ampla variedade de publicações.

As publicações mencionadas têm visões similares da sociedade que sofre com a exclusão, a desigualdade, a pobreza, a devastação ambiental e os primeiros embates do aquecimento global. É preciso repensar o nosso estilo de vida e atentar para a premente necessidade de construção de políticas públicas mais democráticas e participativas, no intuito de encarar essas problemáticas. Estes são os temas centrais tratados no livro O pequeno tratado do decrescimento sereno, de Serge Latouche.

Originalmente publicado em francês, em 2007, o livro foi traduzido para o português, pela editora WMF, e lançado em 2009. Está divido em três partes principais e vários subtemas, além do preâmbulo, introdução e conclusão.

No início, Latouche qualifica o sistema capitalista como uma sociedade fagocitada por uma economia cujo único fim é o crescimento pelo crescimento. Como consequência, o sistema não quer escutar relatórios aterradores, que alertam de se estar chegando ou ultrapassando os limites de nosso planeta. Para enfrentar esta situação ele propõe três passos fundamentais: "Avaliar o alcance do decrescimento, propor, como alternativa, a utopia concreta do decrescimento, e especificar os meios de sua realização" (p. XV).

Decrescimento é, fundamentalmente, um slogan político com implicações teóricas, que visa acabar com o "jargão politicamente correto dos drogados do produtivismo" (p. 4). É importante não confundir o decrescimento com um crescimento negativo. De fato, a diminuição do crescimento afunda as nossas sociedades na incerteza, desemprego, abandono de programa sociais, sanitários, educativos, culturais, entre outros. Para melhor entender o conceito, é preciso entender também que o decrescimento não faz parte do desenvolvimento sustentável. Ele surge para sair das confusões desse campo.

A nossa sociedade da acumulação ilimitada está condenada ao crescimento, baseado na "publicidade, o crédito e a obsolescência acelerada e programada dos produtos" (p. 17). Calcula-se que a humanidade consome quase 30% acima da capacidade de regeneração da biosfera. Para aliviar esta situação, coloca-se inclusive a possibilidade do "controle massivo da população ou a redução, principalmente do terceiro mundo" (p. 31). Contudo, o problema não é o superpovoamento, mas saber dividir os recursos de maneira equitativa e ética. Latouche afirma que nos encontramos, hoje, na beira da catástrofe e que é preciso uma reação rápida e muito enérgica para mudar o rumo.

Um segundo passo para a instalação do decrescimento é compreender que ele é uma utopia concreta e uma proposta revolucionária para viver melhor. Portanto, o decrescimento longe de se refugiar no irreal, tenta explorar as possibilidades objetivas de sua aplicação, como um projeto político. É nesse ponto que o autor faz a sua maior contribuição: uma proposta concreta de como entrar num "circulo virtuoso" de decrescimento sereno, representado por oito mudanças interdependentes que se reforçam mutuamente: reavaliar, reconceituar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar, reciclar (p. 42).

Para alcançar esse propósito ele propõe várias etapas. Primeiro, é preciso inventar a democracia ecológica local, para contrapor à periferização. Da mesma maneira, é preciso recuperar a autonomia econômica local, o que implica em autossuficiência alimentar, econômica e financeira. Finalmente, deve-se promover iniciativas locais decrescentes. Hoje, já estão sendo implementadas em coletividades locais em várias partes do mundo.

Tudo isso é possível, inclusive, nos países do Sul. Paradoxalmente, a ideia do decrescimento nasceu, de certo modo, na África. Para eles, o decrescimento da pegada ecológica e do PIB não é nem necessária, nem desejável. Porém, isso não significa que a sociedade do crescimento deva se instalar ali. Latouche afirma que a ousadia do decrescimento no hemisfério Sul significa provocar um movimento em espiral para entrar na órbita do círculo virtuoso dos oito "erres" (p. 81) e, a partir daí, romper a dependência econômica com o Norte.

Finalmente, um terceiro passo, decorrente dos dois anteriores, é conceber a implementação política do modelo do decrescimento. Segundo Latouche, medidas muitos simples e, aparentemente, quase anódinas podem dar início aos círculos virtuosos do decrescimento. Para isso, é preciso o impulso de várias iniciativas, como: resgatar uma pegada ecológica igual ou inferior a um planeta, integrar, nos custos de transporte, os danos gerados pela atividade, relocalizar as atividades produtivas, restaurar a agricultura camponesa, transformar os ganhos de produtividade em redução do tempo de trabalho e criação de emprego, impulsionar a produção de bens relacionais, como a amizade, reduzir o desperdício de energia, taxar pesadamente as despesas com publicidade e decretar uma moratória sobre a inovação tecnocientífica, para fazer um balanço e uma reorientação das pesquisas, em função de novas aspirações. Destaque especial é dado à redução quantitativa e transformação qualitativa do trabalho, para devolver sentido ao tempo liberado e levar a uma "reapropriação" da existência. Latouche não dá maiores detalhes sobre como alcançar esse objetivo.

Assim, o decrescimento se enquadra na concepção de uma ecologia profunda, já que é a própria sobrevivência da humanidade que está em jogo, portanto, um humanismo bem entendido, que nos convoca a reintroduzir a preocupação ecológica no meio da preocupação social, política, cultural e espiritual da vida humana.

O decrescimento é uma das forças antissistema que mais tem avançado nos últimos anos. Ele oferece uma proposta de mudança radical de paradigma,que parece condizer à situação de crise estrutural que a sociedade moderna alcançou. Essa situação merece respostas fortes e uma virada de 180º na sociedade, tirando de foco o consumo de produtos e resgatando os bens. É um processo de mudança, tanto no nível individual como coletivo, em nossa relação com o meio ambiente, com o planeta e com a vida. Como livro compêndio, ele serve para introduzir o conceito do decrescimento de maneira prática e didática, sendo, em consequência disso, um livro que instiga e nos instala no centro de discussões que estão apenas começando. 

(1) Mestrando em Desenvolvimento Sustentável, Centro de Desenvolvimento Sustentável Universidade de Brasília. E-mail: frodriguez@unb.br

Originalmente publicado no periódico Sociedade e Estado  - vol.27, no.1, Brasília, jan./abr. 2012 - versão impressa ISSN 0102-6992


Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília
Departamento de Sociologia
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Tel: 61 3107-6047
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Para saber mais:



 

Reality shows: uma reprodução do capitalismo. Entrevista com Silvia Viana

Publicado em janeiro 25, 2013 por

Os reality shows seriam impensáveis “até trinta anos atrás, quando o capitalismo tomava por justificativa o ‘bem-estar’ que produzia”, assinala a socióloga.
 
“Os reality shows são mal-estar enlatado para consumo, e isso só é possível em uma estrutura social que já não se preocupa com autolegitimação alguma”. A reflexão é de Silvia Viana, autora do livro Rituais de sofrimento, que será lançado pela Boitempo Editorial no dia 6 de fevereiro em São Paulo, a partir das 19h no Espaço Serralheria (Lapa). Para ela, a popularidade desses programas está diretamente relacionada à reprodução da “forma de dominação típica do capitalismo de acumulação flexível, dominação essa que ainda não foi superada”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Silvia compara os processos do programa à estrutura capitalista, onde “devemos ser ‘fortes’ para ‘superar as dificuldades’ (por mais imbecis e esdrúxulas que sejam) e, por fim, ‘sobrevivermos’”. E conclui: “O assustador é que essa mesma estrutura organiza nossa existência no atual modo de produção: trabalhamos para arrumar mais trabalho, para não sermos demitidos, para sobrevivermos… E se retirarmos essa fantasia que organiza nossa existência, o que resta é o ‘Truman Show’: o tédio insuportável da vida desprovida de sentido”.

Silvia Viana é graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, mestre  e doutora em Sociologia pela mesma universidade.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O elemento sofrimento pode justificar o sucesso de programas de reality shows?

Silva Viana - Se você quer dizer com isso que os telespectadores gostam de assistir a esses programas porque são sádicos, eu responderia que não. Pelo contrário, a noção de que somos todos perversos é o falso discurso dos próprios programas. Quando Pedro Bial afirma, em tom irônico, que o telespectador, em sua “imensa bondade”, deve votar na forma de tormento mais adequada aos participantes (na prova da “garagem”, de 2010), é isso o que ele sugere, mas não é verdade. De fato, nos anestesiamos como uma forma de defesa, para fugirmos do sofrimento, gerado em nós, pela imagem da dor alheia. Nossa sociedade exige que sejamos “fortes”, que não nos deixemos abalar, que “superemos os desafios” (por mais estúpidos e sem sentido que sejam). Mas, acima de tudo, exige que participemos, seja lá do que for, ininterruptamente. Para que possamos cumprir essa ordem social precisamos nos distanciar de nossa própria compaixão. É isso o que os telespectadores fazem: acima de tudo, eles participam, seja lá no que for, seja lá como for.

IHU On-Line – O que os faz permanecer no ar por tanto tempo?

Silva Viana - Se você pensar bem, não é tanto tempo assim. Os reality shows surgiram no início da década de 1990. Eles permanecem ainda hoje por reproduzirem a forma de dominação típica do capitalismo de acumulação flexível, dominação essa que ainda não foi superada. Imagino que esse formato televisivo seria impensável até trinta anos atrás, quando o capitalismo tomava por justificativa o “bem-estar” que produzia. Os reality shows são mal-estar enlatado para consumo, e isso só é possível em uma estrutura social que já não se preocupa com autolegitimação alguma. O capitalismo hoje já não promete nada, nem mesmo o prêmio de consolação da época anterior: segurança e conforto. O horizonte máximo que se apresenta é: “trabalhe, trabalhe muito, pois, talvez assim, você possa continuar tendo mais trabalho até o fim de sua vida”. Isso não é promessa, é ameaça, e é o máximo de garantia que nosso mundo oferece. Mesmo que os reality shows deixem de atrair o público, o importante é que esse sistema que os gera desapareça.

IHU On-Line – O que compõe a “engrenagem do sofrimento”?

Silva Viana - Usei o termo “engrenagem de fazer sofrer” para caracterizar o funcionamento de nossa sociedade. Em termos bastante sintéticos, a máquina funciona da seguinte forma: o capitalismo contemporâneo nos leva a crer que vivemos em permanente escassez (como se não houvesse trabalho ou riqueza para todos). Para que conquistemos nossa cota de migalhas, precisamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para nos mantermos produzindo. Isso significa um sacrifício sem fim, em termos de trabalho exaustivo, mas também em termos de nossa subjetividade, de nossas crenças, de nossas relações sociais, de nosso tempo etc. Por si só, esse sacrifício já é gerador de um imenso sofrimento físico e psíquico. Mas não é apenas isso: estamos já acostumados a ouvir a ladainha segundo a qual “ser um vencedor” significa “vencer a concorrência”, significa passar por cima dos outros. Bem, como não somos uma sociedade de psicopatas, esse “passar por cima dos outros” exige que nos libertemos de nossa compaixão. É precisamente isso o que a propaganda do mundo sugere quando afirma incessantemente que “devemos ser fortes”.

Para nos resguardarmos de toda essa dor e não enlouquecermos, criamos mecanismos psíquicos de defesa, como se nos anestesiássemos a nós mesmos. Assim, somos capazes de suportar cada vez mais sofrimento e assim o sofrimento se torna cada vez mais aceitável. Um exemplo: quando um participante de reality show é obrigado a votar em uma pessoa com a qual têm convivido diariamente, porque “só pode haver um vencedor”, isso gera mal estar. Por isso ele cria mecanismos de defesa que fazem esse trabalho sujo se tornar suportável, daí aquelas repetições de frases feitas: “isso é um jogo, tenho que jogar”, “nós temos menos afinidade”, “gosto dele, mas, infelizmente, algum dia todos teremos que voltar para casa” etc. Não são frases de hipócritas, como se costuma pensá-las, são frases que geram alívio para a realização do trabalho sujo que lhes foi confiado: a eliminação dos outros.

IHU On-Line – Como aparece o príncipio violento do BBB? Em que situações aparece o caráter cruel do jogo?

Silva Viana - Ora, esse princípio é o que mais se divulga! O site da emissora pergunta: “Quer ver o participante sofrer?”, o apresentador diz que aquilo “não é uma colônia de férias”, o diretor afirma que o BBB “é um jogo cruel”, os telespectadores dizem querer ver “sangue”, o narrador da propaganda de “A Fazenda” afirma que “o cerco se fecha, o medo aumenta…”, o participante compara sua situação com a das vítimas de Jigsaw do filme “Jogos Mortais”. Logo após ter sido eliminado mediante a sessão de tortura que ficou conhecida como “quarto branco”, o participante teve que ouvir a seguinte pergunta de Pedro Bial: “Tem gente que vendo lá de casa diz assim: ‘Ah! Mas é só um quarto branco, o que tem de mais?’. Conta pra gente a barra que é”. A humilhação e o sofrimento estão lá para quem quiser ver, em rede nacional, sublinhados por setas de neon. O problema não é que a brutalidade seja um princípio oculto que, para ser visto, necessite de uma análise aprofundada. O problema é outro: como é possível que essa violência banal e despropositada seja explicitada com tamanho desvelo e, ainda assim, as pessoas tomem parte nisso?

IHU On-Line – Por que você afirma que “nenhum contrato assinado pelos participantes de reality shows poderia ser válido em qualquer lugar no qual a democracia e os direitos humanos vigoram”?

Silva Viana - Em teoria vivemos em um Estado de Direito, seu princípio é o de que há direitos fundamentais que são inalienáveis, ou seja, não podemos abrir mão deles, mesmo que assim desejemos. O princípio da inalienabilidade foi formulado justamente para que não haja servidão voluntária, ou seja, uma pessoa não pode abrir mão de seu direito de ir e vir em troca de um prêmio, do mesmo modo, não pode abdicar de sua dignidade por fama. Por mais que os participantes afirmem que seu confinamento seja de sua livre e espontânea vontade (afirmação que, por sinal, deve ser questionada, já que em outros momentos afirmam que necessitam estar lá), isso não poderia acontecer em um verdadeiro Estado de Direito. Além disso, é da lógica dos programas que as pessoas sejam surpreendidas por formas variadas de tortura e humilhação; isso significa que, ainda que fosse aceitável a alienação desses direitos (sabe-se lá com que justificativa), os participantes não poderiam optar por passar pelo que ainda não sabem que ocorrerá. Como os participantes poderiam afirmar que aceitaram livremente ir a um “quarto branco”, e passar por uma sessão enlouquecedora de privação de sentidos, se eles não sabiam que lá seriam atirados?

IHU On-Line – Em que você se baseia ao defender que os reality shows indicam que “vivemos em um estado de exceção permanente, pulverizado e onipresente”?

Silva Viana – No que eu afirmei na resposta anterior. Esses programas assumem o papel de pequenos soberanos e se arrogam o direito total sobre a imagem e os corpos daqueles que lá estão aprisionados.  Isso ficou muito claro no caso do suposto estupro que ocorreu na edição passada do BBB. A produção não apenas protelou a entrada do poder público na “casa”, como realizou, ela mesma, um interrogatório com os envolvidos no caso antes mesmo que a polícia tivesse contato com eles. Além disso, muito do conteúdo dessa investigação privada foi divulgado como parte do show. Por fim, a produção eliminou sumariamente o suposto criminoso, sem que uma investigação pública tivesse sequer sido iniciada. O poder de uma empresa privada – a Rede Globo, mas não apenas ela, também a Record, o SBT, a Bandeirantes e todos os demais produtores desse tipo de mercadoria – de torturar a seu bel prazer, de controlar a alimentação dos “confinados” (inclusive como forma de punição), de submetê-los a escracho público, de expor seus corpos etc, é um poder de exceção que, pelo jeito, tornou-se regra. E não é regra apenas na indústria cultural. Quando a empresa de telemarketing controla os horários de ida ao banheiro de seus funcionários, através de um “check in” em suas estações de trabalho, está fazendo exatamente a mesma coisa.

IHU On-Line – Qual a inspiração que a obra 1984, de George Orwell, exerce sobre o formato de reality shows que são feitos pelo mundo?

Silva Viana - Para além do uso cínico do termo “big brother”, que já é uma declaração explícita da brutalidade do que é transmitido, creio que pouca. Costuma-se associar os reality shows com essa obra devido à vigilância permanente dos confinados. Contudo, a vigilância é fator secundário, importam mesmo os rituais que dão forma ao que será vigiado. Imaginemos que uma emissora realizasse um programa como o Truman Show (Filme de Peter Weir, de 1998), ou seja, que a vida cotidiana de uma pessoa comum fosse transmitida ininterruptamente: o beijo matinal na esposa, a ida de carro ao trabalho, a realização do trabalho diante do computador, a volta ao lar… Fica chato até de contar! Esse programa seria um fracasso estrondoso.

Os reality shows deslocam a vida cotidiana dos participantes, seja mediante o isolamento físico, seja por alguma “transformação radical” em sua vida (como em realities de “transformação” ou de “consultoria”), em todos os casos, impondo-lhes alguma forma de “desafio”. É esse “desafio”, na forma da seleção ou de provas brutais, ou de ambas, aquilo o que gera o interesse na vigilância. Apesar da variedade dos tormentos aplicados, a estrutura narrativa final é apenas uma: devemos ser “fortes” para “superar as dificuldades” (por mais imbecis e esdrúxulas que sejam) e, por fim, “sobrevivermos”.  O produto só se torna vendável quando conformado por essa narrativa. O assustador é que essa mesma estrutura organiza nossa existência no atual modo de produção: trabalhamos para arrumar mais trabalho, para não sermos demitidos, para sobrevivermos… E se retirarmos essa fantasia que organiza nossa existência, o que resta é o “Truman Show”: o tédio insuportável da vida desprovida de sentido.

Originalmente publicado pela IHU On-line e republicado no site Ecodebate, 25/01/2013.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Donos da EPTV controlam usina que tenta despejar assentamento Milton Santos, modelo em agroecologia

Publicado em janeiro 25, 2013 por

Proprietários da Usina Ester, que tenta na Justiça expulsar 68 famílias de área considerada modelo em agroecologia, são donos da afiliada da Rede Globo em Campinas.

Por Guilherme Zocchio, da Agência de Notícias Repórter Brasil

Antônio Carlos Coutinho Nogueira e José Bonifácio Coutinho Nogueira Filho, donos da EPTV, afiliada da Rede Globo em Campinas, estão a frente da Usina Ester, que conseguiu na Justiça Federal reintegração de posse da área em que fica o Assentamento Milton Santos, em Americana, no interior de São Paulo. Com a decisão, 68 famílias estão ameaçadas de despejo no próximo dia 30. A área é considerada modelo em técnicas de agroecologia e na produção de alimentos sem veneno. A Repórter Brasil tentou contato com ambos para obter uma posição sobre a situação por meio da assessoria de imprensa da Usina Ester e da rede EPTV, mas não obteve retorno. A assessoria da Usina limitou-se a informar que “aguarda o cumprimento da decisão judicial”.

Além dos dois empresários, representantes do  grupo Abdalla também têm interesse no processo. Foram eles que arrendaram o terreno para a Usina Ester e que hoje alegam serem os legítimos proprietários da área. Ninguém ligado ao grupo, que foi um dos mais poderosos do estado até a década de 1980, foi encontrado para comentar o caso.
Horta cresce no assentamento Milton Santos, que é referência em agroecologia e produz  verduras, frutas e raízes (Foto: Eduardo Kimpara / Flickr (CC))
Nos balanços financeiros da Usina Ester disponíveis para download no site da empresa, Antônio Carlos Coutinho Nogueira figura como presidente da companhia, e José Bonifácio Coutinho Nogueira Filho, seu irmão, como acionista e membro do conselho administrativo, ao lado de outros parentes. Eles detêm a concessão de 5 veículos —duas estações de rádios e três canais de televisão, quatro em São Paulo e um em Minas Gerais—, segundo informações do site “Os Donos da Mídia”, que reúne informações sobre os principais proprietários de canais de mídia do país (veja o perfil de Antônio Carlos e de José Bonifácio na página do projeto).
Os irmãos José e Antônio, concessionários de mídia
e acionistas da Usina Ester (Foto: Divulgação)
Ambos são filhos de José Bonifácio Coutinho Nogueira, ex-diretor da TV Cultura que fundou em 1979 o grupo das Emissoras Pioneiras de Televisão (EPTV), conjunto de retransmissoras da Rede Globo de Televisão no interior de São Paulo. Além das atividades como empresário no setor de comunicações, o fundador da EPTV também acumulou cargos e esteve próximo de figuras significativas da política brasileira. Foi secretário de Agricultura do Estado de São Paulo, no governo de Carvalho Pinto (1959-1963), e secretário de Educação durante a gestão do governador biônico Paulo Egydio Martins (1975-1979).

A concentração de meios de comunicação nas mãos de políticos ou grandes grupos empresariais é um fenômeno recorrente no Brasil, de acordo com Pedro Ekman, membro de entidade da sociedade civil que estuda e trabalha sobre o direito à comunicação no país, o coletivo Intervozes. Ele explica que, como as concessões de rádio e televisão levam em conta muito mais um critério econômico do que social, isso tende a concentrar os meios de mídia nas mãos de poucos grupos ou pessoas com maior poder aquisitivo.

“A falta de uma política de redistribuição entre mais atores públicos e privados, de diferentes estratos sociais, acaba gerando essa coincidência entre proprietários de terras e concessionários de meios de comunicação”, avalia.

Família Abdalla
 
A confusão jurídica que ameaça as famílias hoje está relacionada ao histórico do “Sítio Boa Vista”, como é conhecida a propriedade. A Usina Ester alega ter direito sobre a área por ter arrendado o terreno do grupo Abdalla, fundado pelo empresário José João Abdalla —que respondeu em vida a mais de 500 processos judiciais, segundo levantamento disponível no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Entre os processos está o movido pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) em 1976, que conseguiu o terreno como garantia de pagamento de dívidas trabalhistas.

Do INSS a área foi repassada ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), onde, em 2006, as 68 famílias de camponeses foram assentadas. O terreno estava ocupado pela plantação de cana de açúcar da Usina Ester, mas, na Justiça Federal, o órgão conseguiu em dezembro de 2005 garantir a implantação do projeto de agroecologia, hoje tido como modelo no interior de São Paulo. A decisão foi revertida no final do ano passado, quando, por meio de outro processo, a Usina Ester e o Grupo Abdalla alegam ter quitado as dívidas que resultaram na desapropriação e readqurido o terreno.

O grupo Abdalla figurou durante mais de 50 anos como um dos mais poderosos conglomerados econômicos do Estado de São Paulo. Constituído a partir dos anos 1920 pelo empresário José João, o empreendimento manteve negócios com empresas que iam desde o ramo têxtil até bancos, na área financeira, ou outros investimentos rurais ou industriais. Seu fundador também teve carreira política, pela qual passou nos cargos de vereador, deputado estadual e federal e secretário do Trabalho, Indústria e Comércio de São Paulo, na gestão do governador Ademar de Barros (1947-1951).

Cercados por veneno
 
Visto por imagens de satélite, o Assentamento Milton Santos aparece cercado por extensas plantações de cana de açúcar. Maria de Fátima da Silva, moradora da área e dirigente estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), diz que o uso recorrente de veneno pela Usina Ester prejudica até hoje a lavoura dos produtores do assentamento. “O uso de agrotóxicos na região é um dos maiores conflitos”, aponta.
Terreno onde está o assentamento Milton Santos (em roxo) está cercado pela produção de cana de açúcar da Usina Ester S/A (Fonte: Wikimapia)
Diante da possibilidade de despejo, as famílias têm realizado mobilizações e defendido que a presidência da República decrete a desapropriação da área — medida que, na avaliação dos assentados, pode reverter a reintegração de posse determinada pela Justiça Federal. No último dia 15, terça-feira, manifestantes ocuparam a sede do INCRA em São Paulo (SP) para pressionar o governo federal. Outros deram início nesta semana a uma greve de fome em frente ao escritório da Secretaria da Presidência da República em São Paulo (SP), que fica na região da Avenida Paulista. Na quarta-feira, 23, outro grupo de assentados ocupou a sede do Instituto Lula, no bairro do Ipiranga, também em São Paulo (SP).

Segundo manifesto redigido por agricultores do assentamento, Lula foi o “presidente da República que, em 2006, assinou a concessão do terreno do Assentamento Milton Santos para fins de reforma agrária”. Eles pedem que o ex-presidente interceda junto a Dilma Rousseff (PT), para que ela assine o decrete de desapropriação da área e reverta a situação judicial em favor do assentamento. O manifesto pode ser lido na íntegra aqui.

EcoDebate, 25/01/2013

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Estudo indica responsabilidade parcial de pesticidas na queda da população de anfíbios



A queda importante na população mundial de rãs e sapos pode ser parcialmente atribuída ao uso de pesticidas, alertaram esta quinta-feira cientistas na Alemanha. Matéria da AFP, no Yahoo Notícias.
Testes com fungicidas e inseticidas, quando usados nas proporções recomendadas, mataram 40% das rãs após sete dias e, em um caso, 100% dos anfíbios após apenas uma hora, afirmaram.
Os experimentos, realizados com apenas um pequeno número de animais, foram feitos por uma equipe chefiada por Carsten Bruehl, da Universidade de Coblenz-Landau, na Alemanha.
Eles capturaram 150 exemplares jovens de rã comum da Europa (“Rana temporaria”) e os expuseram a sete produtos agrícolas, com o objetivo de reproduzir em laboratório as condições encontradas no campo.
As rãs foram mantidas em grandes contêineres, com solo cultivado com cevada. O produto químico foi espargido uma vez, em uma quantidade que os cientistas dizem ser igual àquela que cairia em uma área similar de uma lavoura.
Foram aplicadas três tipos de doses: concentrações recomendadas, um décimo das concentrações recomendadas e 10 vezes as concentrações recomendadas.
A substância mais tóxica, segundo o estudo, foi o fungicida Headline, usada para evitar fungos em cultivos de soja e trigo. Na dose recomendada, ela matou todas as rãs usadas no teste no intervalo de uma hora.
Apenas 5 rãs foram usadas em cada experimento e os animais foram usados cuidadosamente, obedecendo a critérios éticos.
Em cada experimento, apenas três rãs foram inicialmente expostas à substância e se elas sobrevivessem por 24 horas, as outras duas eram incluídas no experimento. Se as três morressem antes de 24 horas, as outras duas não eram inseridas.
Segundo a respeitada “Lista Vermelha” da biodiversidade ameaçada, 41% das espécies de rãs e sapos estão em risco de extinção.
A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), que compila a lista, culpa a perda de hábitat, a poluição, incêndios, as mudanças climáticas, doenças e a superexploração da terra.
Mas o novo estudo, publicado na revista Scientific Reports, destacou que o dano colateral dos pesticidas não foi considerado.
Segundo a pesquisa, os anfíbios são especialmente vulneráveis a estes produtos químicos porque sua pele é altamente permeável.
“A toxicidade demonstrada é alarmante e um efeito negativo em larga escala da exposição terrestre a pesticidas nas populações de anfíbios parece provável”, alertou o artigo.
EcoDebate, 25/01/2013.


Jornalista paraense é novamente condenado a pagar indenização exorbitante a empresário


por Redação do Somos Todos Lúcio Flávio Pinto
O jornalista Lúcio Flávio Pinto edita o “Jornal Pessoal” há 25 anos. Foto: Miguel Chikaoka
Os mais de 30 processos judiciais movidos contra Lúcio Flávio Pinto desde os anos 1990 representam uma tentativa de inviabilizar a produção do jornal alternativo que denuncia fraudes e desmandos de empresários e grupos de poder locais.
Belém, 23 de janeiro de 2013 – Reconhecido no final do ano passado com o Prêmio Especial Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, entre as várias homenagens recebidas por seu trabalho nos últimos anos, o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, que edita há 25 anos o Jornal Pessoal, foi novamente condenado pelo judiciário paraense. Desta vez, ele deverá pagar a quantia de R$ 410 mil (ou 600 salários mínimos) ao empresário Romulo Maiorana Júnior e à empresa Delta Publicidade S/A, de propriedade da família dele, também detentora de um dos maiores grupos de comunicação da Região Norte e Nordeste, as Organizações Romulo Maiorana.
A decisão da desembargadora Eliana Abufaiad, que negou o recurso interposto pelo jornalista no primeiro semestre de 2012, data de 21 de novembro de 2012, mas foi publicada apenas em 22 de janeiro com uma incorreção e, por causa disso, republicada nesta quarta-feira, dia 23. O jornalista vai recorrer da decisão, tentando levar o caso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas teme que a condenação seja confirmada.
Romulo Maiorana Júnior alega ter sofrido danos morais e materiais devido à publicação, em 2005, do artigo “O rei da quitanda”, no qual o jornalista abordava a origem e a conduta do empresário à frente de sua organização. Por causa desse texto, em 12 de janeiro do mesmo ano, Lúcio Flávio foi agredido fisicamente pelo irmão do empresário, Ronaldo Maiorana, junto com dois seguranças deste em um restaurante de Belém.
Depois da agressão, o jornalista também se tornou alvo de 15 processos judiciais, penais e cíveis, movidos pelos irmãos. Chegou a ser condenado em 2010 a pagar uma quantia de R$ 30 mil, mas recorreu da decisão do juiz Francisco das Chagas. A recente decisão da desembargadora Eliana Abufaiad, se confirmada, significará um duro golpe às atividades desempenhadas por ele, que não dispõe de recursos financeiros para arcar com as indenizações.
Lúcio Flávio Pinto, que já perdeu todas as vezes em que recorreu às condenações judiciais e vê nesses processos uma clara tentativa de impedimento à realização do seu trabalho junto à imprensa, lamenta o fato de juízes e o próprio Tribunal de Justiça do Pará não terem avaliado o mérito dos recursos por ele apresentados.
“Os tribunais se transformaram em instâncias finais. Não examinam nada, não existe mais o devido processo legal. E isso não acontece só comigo. São milhares de pessoas em todo o Brasil, todos os dias, que não têm direito ao devido processo legal. Em 95% dos casos julgados no país rejeitam-se os recursos. Não tem jeito”, afirma. Ele também informa que há outra ação judicial em curso, ainda a ser julgada, na qual Romulo Júnior pede R$ 360 mil de indenização também por danos morais e materiais.
Perseguição judicial
Lúcio ficou ainda mais conhecido no início de 2012 quando foi alvo de uma condenação que mobilizou pessoas e organizações, nacionais e estrangeiras, que o obrigaria a indenizar a família do falecido empresário Cecílio do Rego Almeida. O crime teria sido chamar de “pirata fundiário” o homem que tentou fraudar e se apropriar ilegalmente de quase 5 milhões de hectares de terras públicas, na região paraense do Xingu, denúncia posteriormente comprovada pelo próprio Estado.
Por fazer uma radiografia minuciosa e crítica da região, o que o tornou um dos maiores especialistas em temas amazônicos, e reportar tentativas de fraudes aos cofres públicos, erros e desmandos do poder judiciário local, o jornalista foi alvo de exatos 33 processos desde 1992.
Já sofreu agressões físicas e verbais por causa de seus artigos, sem declinar o direito de veicular informações de interesse público, em seu jornal quinzenal reconhecido pela qualidade do conteúdo em detrimento de uma produção quase artesanal.
* Publicado originalmente no site Revista Fórum e republicado no site da Agência Envolverde, 24/01/2013.

Cenários para 2013. Reforma Agrária, da estagnação para a regressão

A agenda da Reforma Agrária encontra-se estagnada e vem regredindo no governo Dilma Rousseff. Ao longo dos últimos 20 anos, o governo Dilma é o que menos desapropriou imóveis rurais para fazer reforma agrária.

Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), “no ano de 2012, o Brasil assistiu a Reforma Agrária alcançar os seus piores indicadores em décadas. Enquanto do outro lado, o Agronegócio se consolidou como o modelo preferencial do Governo Dilma para o campo, priorizado por diversas políticas públicas, inclusive com financiamentos oficiais de elevadas proporções”. De acordo com a CPT, “se continuar no mesmo ritmo de 2012, o Brasil precisará de mais 50 anos só para assentar a demanda atual de famílias sem terra acampadas”.

Ainda segundo a CPT, “outra decepção foi com relação às áreas de assentamentos já existentes, declaradas como prioridade pelo governo Dilma”. A CPT diz que “faltou política de Estado (crédito, habitação, infraestrutura, parcelamento, etc) e para a maioria dos assentamentos não foram liberados recursos para os Planos de Desenvolvimento dos Assentamentos (PDAs) – ferramenta principal para obtenção de créditos de investimentos e produção”.

Por outro lado, diz a organização, “a pauta da Reforma Agrária do governo caminhou em um ritmo inversamente proporcional à velocidade e intensidade do agronegócio. A permissividade irrestrita concedida à bancada ruralista dominou internamente o governo e fez paralisar não só o Incra, mas tudo aquilo que pudesse interferir em seus interesses”.

Segundo a CPT, “lamentavelmente, a opção do Governo pelo agronegócio está consolidada e é demonstrada tanto através do discurso político da maioria dos ministérios como pela forte liberação de recursos para as grandes empresas do setor”. O agronegócio, afirma, “se instala onde deseja e o Estado brasileiro oferece todas as condições para isso, mesmo em áreas destinadas para a conservação da biodiversidade, terras indígenas ou de populações tradicionais diversas, ainda que o discurso oficial algumas vezes afirme o contrário”.

A hegemonia do agronegócio é segundo João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, o grande entrave para se alterar a estrutura agrária brasileira. Segundo ele, “85% de todas as melhores terras do Brasil são utilizadas apenas para soja/ milho, pasto e cana-de-açúcar”. Stedile destaca que “apenas 10% dos proprietários rurais, os fazendeiros que possuem áreas acima de 500 hectares, controlam 85% de todo o valor da produção agropecuária, destinando-a, sem nenhum valor agregado, para a exportação”.

“O agronegócio reprimarizou a economia brasileira”, afirma João Pedro para quem “somos produtores de matérias-primas, vendidas e apropriadas por apenas 50 empresas transnacionais que controlam os preços, a taxa de lucro e o mercado mundial”. Surpreendentemente em 2012, o Brasil precisou comprar feijão preto da China, comenta Roberto Smeraldi.

Na opinião de Alexandre Conceição, também da coordenação nacional do MST, “o governo Dilma é refém dessa aliança com o agronegócio, que é o latifúndio modernizado, que se aliou com as empresas transnacionais. O governo está iludido pela proteção que a grande mídia dá a essa aliança e com os saldos na balança comercial”.

Esse modelo, diz Stedile “é insustentável para o meio ambiente, pois pratica a monocultura e destrói toda a biodiversidade existente na natureza, usando agrotóxicos de forma irresponsável. O resultado é que o Brasil responde por apenas 5% da produção agrícola mundial, mas consome 20% de todos os venenos do mundo”, afirma.

O problema é que o governo não demonstra disposição para mudar esse quadro. “Infelizmente, não há motivação no governo para tratar seriamente esses temas. Por um lado, estão cegos pelo sucesso burro das exportações do agronegócio, que não tem nada a ver com projeto de país, e, por outro lado, há um contingente de técnicos bajuladores que cercam os ministros, sem experiência da vida real, que apenas analisam sob o viés eleitoral ou se é caro ou barato”, diz João Pedro Stedile.

Segundo ele, “ultimamente, inventaram até que seria muito caro assentar famílias, que é necessário primeiro resolver os problemas dos que já têm terra, e os sem-terra que esperem. Esperar o quê? O Bolsa Família, o trabalho doméstico, migrar para São Paulo”? O governo está prometendo que em 2013 irá acelerar as desapropriações.

A regressividade da agenda social no mundo rural acompanha também as populações tradicionais. A falta de prioridade não atingiu apenas os sem-terras, mas também as comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas, pescadores tradicionais, bem como os agricultores e agricultoras que sofrem os efeitos de uma seca de dimensões insuportáveis, principalmente no Nordeste.

As esperanças de retomada da agenda dos povos do campo e tradicionais encontram-se no movimento social. Um fato alentador foi a realização em agosto de 2012, do Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e povos do campo, das águas e das florestas, que reuniu cerca de 7 mil pessoas em Brasília. A perspectiva que se apresenta para 2013 é de que os povos do campo coloquem em marcha as lutas unificadas e assumam para si a responsabilidade da Reforma Agrária e da defesa dos territórios das comunidades tradicionais ameaçadas pelo capital.

A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.

Originalmente publicado pela IHU On-line e republicado pelo site Ecodebate, 22/01/2013.
 
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