terça-feira, 30 de abril de 2013

Operação Tapajós: “Os Munduruku não querem guerra”. Entrevista especial com Roani Valle


“Ficamos desolados com a constatação de que, efetivamente, a Convenção 169 da OIT neste país é inoperante pelo alto grau de obstruções que ela sofre”, diz o antropólogo.

Confira a entrevista.

Foto: Telma Monteiro

“Os Munduruku não querem guerra. Eles querem ser consultados aberta e coletivamente e querem que sua opinião tenha poder vinculante para a interrupção dessas obras”, diz Roani Valle à IHU On-Line, após visitar os indígenas Munduruku contrários à construção do complexo hidrelétrico do Tapajós, no Pará. O antropólogo esteve na aldeia Sawe Muybu no final de março e pôde visualizar a atuação da Força Nacional de Segurança na região. “Fiquei muito assustado com a situação. Tinha conhecimento da Operação Tapajós e sabia da tensão na área, só não imaginava tanto. Presenciei uma incursão noturna na aldeia perpetrada por homens estranhos, não identificados, fazendo algo semelhante ao que batedores fazem, observação sub-reptícia, sondagem, espionagem furtiva; eles atracaram no porto da aldeia por volta das 22h30 do dia 29 de março”, relata em entrevista concedida por e-mail.

Segundo ele, 250 homens da Força Nacional de Segurança – FNS encontram-se entre o Médio e o Alto Tapajós, mas somente 60 fazem a escolta dos biólogos envolvidos com o EIA-Rima da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. “Quanto aos outros 190 homens do efetivo da FNS, que também estariam na região, as informações são controversas. Há uma versão que afirma estarem estacionados no 53º Batalhão de Infantaria de Selva, em Itaituba-PA, fazendo revezamento da escolta semanalmente; há outra versão segundo a qual teriam se dirigido para a localidade de Machado, no Mangabal, no local da segunda hidrelétrica do complexo, Jatobá, ou seja, a operação não se restringiria à hidrelétrica de São Luiz do Tapajós; e ainda há uma terceira versão que sustenta que esse contingente foi ou será direcionado para o município de Jacareacanga-PA, na vizinhança imediata da terra indígena Munduruku”. E acrescenta: “Se essas informações estiverem corretas, teriam ocupado postos estratégicos na área, não se tratando, portanto, de um processo de militarização geograficamente pontual, mas que se espalha regionalmente entre o Médio e Alto Tapajós, com um amplo perímetro cercado”.

Roani Valle é doutor em Arqueologia e professor-adjunto no Programa de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que contexto e por que acontece a operação Tapajós em Itaituba, no oeste do Pará?

Roani Valle – Até onde me é possível entender, isso se dá no contexto de criar garantias para a execução do complexo hidrelétrico do Tapajós. Todos com quem converso – indígenas, movimentos sociais, intelectuais, acadêmicos, organizações não governamentais etc. – batem nesta mesma tecla.

Foto: Fernanda Ligabue

IHU On-Line – Qual a necessidade da presença militar na região e quantos militares participam da operação?

Roani Valle – Até onde me é dado saber, real necessidade não há. Isso foi desencadeado por arbitrariedades de não indígenas, governo e pesquisadores, que não conduziram uma interlocução adequada com os indígenas e entraram nas áreas de uso da aldeia sem a devida autorização. Nesse caso, eram os pesquisadores da primeira fase do EIA-Rima biológico da hidrelétrica São Luiz do Tapajós, que, ao serem flagrados dentro da área, foram convidados a se retirar, pois estavam invadindo território indígena. Os Munduruku, até onde consegui entender, tomam decisões coletivas, possuem um sistema político centralizado que permeia cerca de 116 aldeias, e apenas querem uma coisa: serem consultados no processo com antecedência da efetiva implantação do complexo hidrelétrico. Não foram. Para o governo, penso que a presença militar se faz necessária para reprimir qualquer possível reação do povo Munduruku contra a implementação do Complexo Hidrelétrico do Tapajós, em detrimento de um processo de consulta correto, que se faz necessário. Fui informado que os militares da Força Nacional de Segurança – FNS encontram-se no momento entre o Médio e o Alto Tapajós, com um efetivo de 250 homens. Também há participação do 53º Batalhão de Infantaria de Selva do Exército, mas não sei quantos deles estão em área.

Justificativa

A Advocacia Geral da União – AGU justifica a operação militar na região como necessária para concluir o EIA-Rima da usina São Luiz do Tapajós ainda em 2013. As informações que me constam dizem que apenas 60 homens da FNS fazem a escolta dos biólogos que estão envolvidos no EIA-Rima da hidroelétrica São Luiz do Tapajós. Quanto aos outros 190 homens do efetivo da FNS, que também estariam na região, as informações são controversas. Há uma versão que afirma estarem estacionados no 53º Batalhão de Infantaria de Selva do em Itaituba-PA fazendo revezamento da escolta semanalmente; há outra versão segundo a qual teriam se dirigido para a localidade de Machado, no Mangabal, no local da segunda Hidrelétrica do Complexo, Jatobá, ou seja, a operação não se restringiria à hidrelétrica de São Luiz do Tapajós; e ainda há uma terceira versão que sustenta que esse contingente foi ou será direcionado para o município de Jacareacanga-PA, na vizinhança imediata da terra indígena Munduruku. Portanto, se essas informações estiverem corretas, teriam ocupado postos estratégicos na área, não se tratando, portanto, de um processo de militarização geograficamente pontual, mas que se espalha regionalmente entre o Médio e Alto Tapajós, com um amplo perímetro cercado.

IHU On-Line – A presença militar na região gerou algum conflito?

Roani Valle – Conflitos diretos, propriamente ditos, nenhum até o momento. Mas a tensão e o medo que eu testemunhei na área é grande, e pode escalonar para uma conjuntura mais crítica, dependendo das decisões que o governo federal tomar de agora em diante (lembremos do que ocorreu em Teles Pires meses atrás). A permanência na atual situação é insustentável. A mensagem entendida é que haverá uma consulta pública pela força das armas da FNS e do BIS. Queremos todos evitar a repetição do conflito de Teles Pires em novembro de 2012, o que é absolutamente indesejável. Entre a flecha e o fuzil há completa consciência de quem sai perdendo, e os Munduruku sabem disso. A meu ver, não haverá confronto nesses termos, porque a luta é jurídica sobretudo pela legalidade do processo. Os Munduruku não querem guerra. Eles querem ser consultados aberta e coletivamente e que sua opinião tenha poder vinculante para a interrupção dessas obras.

Quem está decidindo por um conflito, com implicações talvez genocidas que se avizinha toda vez que um fuzil FAL, AR 15 ou HK 33 é apontado para uma flecha, é o governo brasileiro. Isso porque não se trata de guerra stricto sensu, que se dá entre exércitos formais de estados nacionais. Ao primeiramente criar conflitos socioambientais e, posteriormente, militarizá-los no intuito resolutivo, reprimindo as reações de parcela considerável da sociedade brasileira, que se encontra privada de recursos naturais indispensáveis à sua sobrevivência, o governo brasileiro promove a escalada no terror, na violência psicológica e na insegurança alimentar. Nesse sentido, é possível falarmos num escalonamento para uma guerra de baixa intensidade em instalação ou já instalada.

Esta doutrina militar desenvolvida em Washington nos anos 1970 envolve terror, humilhação, coerção, ameaça, supressão de acesso a recursos naturais e dos próprios recursos, controle da acessibilidade e deslocamento físico-espacial, supressão informacional e conflitos armados sub-reptícios, camuflados (como o de operações para coibição de crimes ambientais), pontuais e rápidos com ações localizadas e orientados para obterem o máximo de impacto emocional e simbólico em suas vítimas, é covarde mas extremamente eficiente. Nesse caso, repito, um possível conflito armado seria apenas de um lado, pois apenas um lado tem armas. E reitero: a natureza do que parece se avizinhar é melhor caracterizável na versão mais branda como uma guerra de baixa intensidade de curta duração e, na pior das hipóteses, como um genocídio em médio prazo. Esta palavra é horrorosa e causa calafrios. Mas infelizmente o que podemos pensar se a relação fuzil X flecha se tornar lugar comum na resolução de problemas socioambientais?

IHU On-Line – O senhor visitou recentemente a aldeia dos Munduruku. O que pode observar nessa visita?

Roani Valle – Conduzo um projeto de arqueologia colaborativa com professores indígenas Munduruku nas aldeias Munduruku do médio Tapajós, e visitei a aldeia Sawre Muybu entre os dias 29 e 30 de março. Fiquei muito assustado com a situação. Tinha conhecimento da operação Tapajós e sabia da tensão na área, só não imaginava tanto. Presenciei uma incursão noturna na aldeia perpetrada por homens estranhos, não identificados, fazendo algo semelhante ao que batedores fazem, observação sub-reptícia, sondagem, espionagem furtiva; eles atracaram no porto da aldeia por volta das 22h30 do dia 29 de março (com o gerador de energia ligado não é possível ouvir aproximação de embarcação motorizada), portanto, supomos que tenham se esgueirado pela trilha que leva até a aldeia e iluminaram com lanterna uma das casas, o que assustou os moradores desta residência, que deram o alerta geral imediatamente.

Os Munduruku são habilidosos caçadores acostumados a rastrear caça na floresta à noite e, ao perceberem a aproximação, foram ao encalço dos invasores que se evadiram rapidamente. Houve, de fato, uma tentativa de invasão do perímetro doméstico da aldeia por elementos desconhecidos. Identificamos marcas de voadeira e de botas numa área adjacente ao porto da aldeia, o que nos sugeriu se tratar de uma incursão furtiva de militares. Mas não podemos provar tal fato, com as evidências encontradas. Independentemente disso, o medo e o terror foram grandes na aldeia e na noite de 29 para 30 de março ninguém dormiu. As pessoas, principalmente crianças e idosos, passaram muito mal, houve desfalecimentos, choro e desespero infantil. Somando-se a isso as incursões da aeronave militar sobre a aldeia nos dias 26 e 27 de março, relatadas pelas pessoas, em que um helicóptero militar ficou parado acima do campo de futebol da aldeia, dando voltas ao redor do perímetro por 30 minutos, enquanto dezenas de voadeiras apinhadas de militares passavam, não por acaso, em frente à aldeia pelo rio (no dia 26).

Entende-se bem a medida do terror que aquelas pessoas passaram entre 26 e 30 de março de 2013. Um fato relevante constatado é que todas as atividades produtivas (caça, pesca, agricultura, produção de farinha) estavam paralizadas ou reduzidas a níveis insuficientes para atender às demandas de sobrevivência da aldeia, em função do estado de medo lá instaurado, gerando uma situação de insegurança alimentar preocupante. Todos temiam Teles Pires e sua semiótica da morte, o helicóptero e a incursão furtiva noturna reimplantaram as memórias aterrorizantes daquela situação nos Munduruku desta aldeia, neles e em nós não indígenas. Estamos todos nós traumatizados.

IHU On-Line – De acordo com o Ministério Público Federal, os Munduruku não aceitam estudos para usinas em suas terras enquanto não for feita a consulta prévia que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho obriga. Como essa questão tem sido discutida entre os envolvidos?

Roani Valle – Os indígenas têm muita clareza do que pesa sobre eles e de seus direitos; sabem que a convenção n. 169 da OIT, embora no papel tenha sido assinado pelo Brasil desde 2004, na prática não tem tido efeito: não há precedente para ela, não há jurisprudência em solo brasileiro para tal dispositivo internacionalmente aplicado. O que há é uma série de dispositivos instituídos como a Portaria n. 303, a PEC 215, a presidência da comissão de meio ambiente do senado brasileiro na mão do maior sojeiro do país, e mais recentemente o decreto n. 7.957-2013, que institui o Gabinete Permanente de Gestão Integrada para a proteção do Meio Ambiente e regulamenta a atuação das forças armadas na proteção ambiental. Na prática, isso parece se reduzir à militarização de todas as questões socioambientais no Brasil. Com base nisso, ficamos desolados com a constatação de que, efetivamente, a convenção n. 169 neste país é inoperante pelo alto grau de obstruções que ela sofre. Não é aplicada na atual conjuntura por se tratar, em meu entendimento, de um “mal negócio” para o grande capital (inter) nacional que atua ostensivamente por trás e pela frente das hidroelétricas amazônicas, e do grande projeto nacional de desenvolvimento.

IHU On-Line – Quais as maiores dificuldades no diálogo entre os Munduruku e representantes do governo federal?

Roani Valle – Poderíamos atalhar uma resposta para essa questão por diversos caminhos, mas ontologicamente, em sua essência, acredito que representam projetos de existência humana, que se antagonizam por escolha deliberada de um dos projetos. O modelo do governo brasileiro, e da agenda internacional ao qual se submete, é predatório, baseado na acumulação e no consumo industrial de bens e comportamentos insustentáveis para a biosfera planetária em curto prazo. Os Munduruku representam uma filosofia humana milenar em quasi-estase socioambiental com os ecossistemas amazônicos. A meu ver, são sistemas cognitivo-epistemológicos incompatíveis e em competição pela mesma parcela de recursos naturais.

Fenômenos como esse já se repetiram outras vezes na história da ecologia humana desde a especiação de homo sapiens sapiens na África há 200.000 anos. Somos a única espécie de nosso gênero viva nos últimos 25 mil anos. Uma anomalia biológica. Por que será? Mas não se trata de relativizar através de reducionismos biológicos os conflitos humanos; trata-se de uma guerra (em sentido amplo) entre cosmovisões que já dura 513 anos, cujo aspecto interexcludente é artificial, é uma construção cultural, política e econômica, mas não uma inevitabilidade. Enquanto a inexorabilidade do processo de construção das hidroelétricas for defendida – uma invenção perversa da criatividade humana perseguindo um caminho deliberadamente equivocado embriagado por uma cegueira simbólica, cognitiva –, e o governo atuar unilateralmente em territórios Munduruku, com presença militar ostensiva, o diálogo será no mínimo reduzido a trocas de acusações. Em meu entendimento, desde que tenham sua terra e seu rio, os Munduruku conseguem sobreviver neste mundo quase tranquilamente. O problema somos nós, ou melhor, o Estado brasileiro e suas ramificações determinantes extranacionais.

IHU On-Line – Em encontro com os Munduruku, Gilberto Carvalho disse que o complexo de Teles Pires é necessário. De fato é?

Roani Valle – Não sou especialista no tema, mas é possível que isso se encaixe na mesma falácia de inexorabilidade desenvolvimentista acima mencionada. Não é, não foi e nunca será a única alternativa. Não existe um único caminho na vida, nos processos vitais. Afirmar isso em termos culturais é uma falácia equivalente; inevitabilidade é uma falácia biológico-cultural e filosófica. Outro processo questionável é a irreversibilidade quando coadunado à inexorabilidade nas escolhas humanas. Nesse nível ambos os argumentos, quando operam juntos, são falaciosos, embora a irreversibilidade exista no mundo físico e, portanto, biológico-cultural, pois se trata de uma propriedade da matéria, em seu conceito físico, um estado, ou condição, possível de existência das coisas, dos sistemas e de seus processos transformativos. Atingi-la, porém, é relativamente raro.

Processos irreversíveis são normalmente de magnitude catastrófica, erupções vulcânicas, impactos de meteoro e hidroelétricas, por exemplo, têm essa capacidade de afetarem processos ecossistêmicos em níveis irreversíveis. A diferença em relação às duas primeiras catástrofes é que não as escolhemos. Portanto, não se trata de necessidade como condição sine qua non, pois há uma escolha política muito explícita nisso. Não é necessário para o Brasil, é escolhido para o Brasil, para desempenhar um papel instrumental de fornecedor de matérias-primas baratas (energia), porém de alto custo social e ambiental, num mundo em que não temos autonomia muito menos hegemonia (esta segunda totalmente dispensável). Assustadora é a ausência de debate qualificado na população brasileira, em todas as classes e níveis de instrução, e sua complacência e adesão generalizada a essa alucinação coletiva de inexorabilidade desenvolvimentista.

IHU On-Line – Quais as implicações da construção da hidrelétrica São Luiz do Tapajós para os indígenas Munduruku?

Roani Valle – Existem várias possibilidades, todas preocupantes. Num cenário extremo, porém realista e plausível, podemos falar em extermínio no médio prazo por supressão de recursos naturais como uma delas, além de insegurança alimentar e fome. Se houver ação militar mais incisiva e continuada decorrendo em conflito aberto, então pode-se pensar em morte física de um contingente populacional de maneira mais rápida. Por fim, um cenário de genocídio, isto é, sensu stricto, extermínio de uma linhagem genética específica de homo sapiens sapiens ou redução significativa e perigosa de sua variabilidade genética (efeito de gargalo), pode ser ventilado como possibilidade derivada das outras.

Pode-se pensar em outro cenário extremo, porém plausível, mas com menos morte física, ou seja, um grande contingente populacional indígena sendo obrigado a adotar um padrão de vida alienígena, um padrão de vida semelhante ao da parcela da sociedade nacional não indígena mais pobre. Sem autonomia em recursos de sobrevivência econômico-social sofrem um processo de mudança cultural rápida e profunda, descaracterização de padrões socioambientais, simbólicos, linguísticos, filosóficos “tradicionais” Em outras palavras, etnocídio pode ser outro processo menos extremo que o genocídio, mas não menos terrível como preço a ser pago pelo atual modelo desenvolvimentista.

Fato é que a mudança ambiental abrupta e profunda terá um efeito catastrófico para a adaptabilidade humana tapajônica (amazônica) e, nesse caso, a irreversibilidade não é falaciosa, é real e imposta. Eventos de extinção biocultural são plausíveis. Se são implantados do jeito que estão sendo planejados e praticados, esses dois cenários tenebrosos são factíveis em médio prazo. Mas, como cientista, não acredito em inexorabilidade, e tenho pouca fé na irreversibilidade banalizada. Portanto, é possível construirmos outro caminho. Os povos indígenas nas Américas, em boa parte dos casos – e aqui na Amazônia não é diferente –, passaram a maior parte dos últimos 20.000 anos (e essa é uma visão arqueologicamente conservadora) fazendo isso, construindo simultaneamente múltiplas possibilidades desenvolvimentistas.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Roani Valle – Quero retomar o ponto do engajamento coletivo da sociedade brasileira nessa alucinação coletiva de inexorabilidade desenvolvimentista. É possível que o fenômeno “Lula” tenha sido um fator causal dessa homogeneização. Me pego pensando se, em certo sentido, este fenômeno não representou uma sofisticação na tecnologia de controle social, político e emocional do sistema capitalista internacional. Teria sido, portanto, mais do que uma concessão do sistema, foi realmente um salto evolutivo dentro da biotecnosfera do capital. Um exemplo político-cultural de punctuated equilibria, em que se opera uma microrrevolução, abrupta, intensa e pontual nos mecanismos de dominação e poder, depois do que se segue uma reestabilização controladora amplificada, o atual governo.

Ou podemos pensar numa espécie de exaptação política, em que uma brilhante mente articuladora popular e sindical se torna uma ferramenta valiosa e sofisticada de controle social e ideológico do capital, como a caneta que serve para escrever mas pode servir para rebobinar fitas cassetes, ou prender cabelos.

Seja de uma forma ou de outra, resulta na preparação do terreno para um novo processo de expansão do sistema, uma nova geração dos mecanismos de controle e dominação. Um exemplo tão bem sucedido que a segunda maior força capitalista da Terra representada num estado nacional, os EUA, tentaria replicar uma experiência semelhante, adaptada a sua conjuntura específica, com o fenômeno Obama. Mas isso é apenas uma especulação de que esses dois processos representariam uma homologia política.

Fato é que estamos vivendo tempos difíceis, sobretudo para os povos indígenas e populações tradicionais, e pode piorar. Mas são escolhas. E escolhas não são inexoráveis por natureza; algumas podem ser irreversíveis, como é o caso das hidroelétricas. Terríveis irreversibilidades escolhidas por poucos e impostas a muitos com o argumento falacioso da inevitabilidade desenvolvimentista necessária.

Originalmente publicado no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 07/04/2013.


Hidrelétricas do Tapajós: MPF quer saber se proposta de consulta obedece legislação


Consulta deve seguir o estabelecido pela Convenção 169 da OIT, exige MPF

O Ministério Público Federal (MPF) solicitou à Secretaria-Geral (SG) da Presidência da República que informe detalhes sobre a proposta de plano de consulta às comunidades indígenas impactadas pelas hidrelétricas projetadas para a bacia do rio Tapajós. Essa proposta, segundo a página da SG na internet, teria sido apresentada pela secretaria em março deste ano à Associação Pusuru, formada por líderes Munduruku, e a um grupo de indígenas, vereadores e professores da região.

No ofício enviado à SG nesta quarta-feira, 10 de abril, o procurador da República Fernando Antônio Alves de Oliveira Jr. solicita que a secretária-adjunta da SG, Juliana Gomes Miranda, apresente o modelo proposto e esclareça se esse modelo está de acordo com a manifestação do MPF em ação civil pública.

O MPF também questionou a SG sobre a adequação do modelo à convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. A convenção 169, da qual o Brasil é signatário, prevê que os povos indígenas e tradicionais têm direito à consulta livre, prévia e informada.

A pedido do MPF, no final de 2012 a Justiça Federal proibiu a concessão de licença ambiental para a usina São Luiz do Tapajós enquanto não forem realizadas a consulta prévia aos índios afetados e a Avaliação Ambiental Integrada dos impactos de todas as usinas planejadas para a bacia do rio Tapajós.

A usina integra um complexo de aproveitamentos hidrelétricos no oeste do Pará que vão afetar a terra Munduruku, onde vivem mais de 10 mil indígenas, além de unidades de conservação, comunidades quilombolas, cidades e reservas extrativistas.

O juiz José Airton de Aguiar Portela fixou multa diária de R$ 100 mil em caso de desobediência à proibição. Para conceder qualquer licença, os réus – União, Ibama, Aneel, Eletrobrás e Eletronorte – terão que realizar a consulta aos índios, avaliação ambiental integrada e avaliação ambiental estratégica. As avaliações ambientais são exigências do próprio Ministério das Minas e Energia desde 2009, mas não foram feitas para as usinas do Tapajós.

A consulta aos índios Munduruku, de acordo com a decisão judicial, deve ser dirigida às comunidades Andirá-Macau, Praia do Mangue, Praia do Índio, Pimental, Km 43, São Luiz do Tapajós e outras que ainda não tenham sido localizadas.



“Homem”, uma animação de Stevie Cutts



Uma mensagem lúdica para fazer pensar

Ilustrador especializado em animação, o londrino Steve Cutts (site) lançou essa semana um curta genial sobre como a humanidade age em relação aos outros habitantes deste planeta e em relação ao próprio meio ambiente. É tão óbvio e sem sentido que, por alguns instantes, você terá vergonha de pertencer à mesma espécie do personagem principal do filme. Intitulada simplesmente de “Man” (Homem), o curta exibe uma mensagem consistente sobre o consumo de carne, testes em animais, poluição dos rios, derrubada de florestas e todas as atividades suicidas que o ser humano mantém.

Assista “Man” | Vimeo

Ficha Técnica

Roteiro e Direção: Steve Cutts // País: Inglaterra // Ano:2012 // Duração: 3 minutos

Clique na imagem para ampliar

Outros trabalhos interessantes de Stevie Cutts

Além do recente “Man”, Cutts tem vários trabalhos que valem o clique. Na animação “In The Fall” (Na Queda), o artista londrino critica o real sentido da vida de um trabalhador de escritório.

Assista “In The Fall” | Vimeo

Ilustrações e mais críticas ao estilo de vida urbanóide

Além de usar as animações para se expressar, Steve tem várias peças em ilustração estática. Em algumas das mais recentes, Cutts faz claras críticas ao McDonalds e, mais uma vez, ao estilo de vida típico de escritório. Após trabalhar por anos em grandes agências de publicidade da Inglaterra, Steve deixou tudo e hoje é um requisitado freelancer.

Clique na imagem para ampliar

 Originalmente publicado nos site ViSta-se, 27/12/2012.


Novo estudo aponta participação de bactérias na relação entre o consumo de carne e doenças do coração



Além da gordura saturada e do colesterol, consumo de carnes e laticínios aumentam as chances de doenças cardiovasculares por presença de bactérias que se alimentam de uma substância química presente nestes produtos

Segundo estudo publicado recentemente no periódico “Nature Medicine” (veja aqui, em inglês), bactérias que habitam o trato digestivo humano metabolizam uma substância presente nas carnes e laticínios chamada carnitina, transformado-a em óxido de trimetilamina, conhecido causador de aterosclerose (doença ligada ao entupimento das astérias).

Os pesquisadores da escola de saúde pública “Cleveland Clinic”, considerado um dos 4 melhores hospitais dos EUA, analisaram os índices de carnitina em ovolactovegetarianos, veganos e também em pessoas que consomem carnes e laticínios e cruzaram os dados com  exames cardíacos realizados por eles. Ao todo, mais de 2,5 mil pessoas foram examinadas no estudo.

O cientista líder da pesquisa, Stanley Hazen, foi enfático quanto aos benefícios do não consumo de carne:

“Uma dieta com muita carnitina altera a composição da flora, o que torna os consumidores de carne mais suscetíveis a formar o óxido de trimetilamina e ter seus efeitos ligados ao entupimento de vasos. Ao mesmo tempo, vegetarianos e veganos têm uma capacidade reduzida de sintetizar o óxido da carnitina, o que pode explicar os efeitos benéficos dessas duas dietas.”

Embora encontrada em menores quantidades em carnes brancas como a de frango, peixes e também em laticínios, a carnitina está presente nestes produtos, o que pode complicar a saúde do coração mesmo em uma pessoa que não consome carne vermelha, mas consome outros tipos de produtos de origem animal, por exemplo.

Antes deste estudo, apenas o colesterol e a gordura saturada presentes nas carnes eram considerados os culpados pelo sabido aumento nas chances de desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Portanto, há agora mais um motivo para que a população não consuma estes produtos: as bactérias que se alimentam de carnitina e liberam óxido de trimetilamina.

Repercussão na mídia

O estudo tem sido destaque em jornais de todo mundo. A edição desta segunda-feira (8) do Jornal Nacional também comentou a pesquisa, assista aqui.

Originalmente publicado no site ViSta-se, 08/04/2013.


“Há um sistema político ruralista no Brasil”, afirma autor do livro Partido da Terra


O jornalista Alceu Castilho lançou, no dia 20 de agosto, o livro Partido da Terra, que revela a quantidade do território brasileiro que está nas mãos de políticos. A obra é resultado de três anos de pesquisa em mais de 13 mil declarações de bens de políticos eleitos em 2008 e 2010 no país.

Alceu Castilho pesquisou bens rurais de políticos durante três anos | Foto: Diego Jock / Divulgação

Castilho se debruçou especialmente sobre os bens rurais declarados pelos prefeitos, deputados estaduais e federais, senadores e governadores. As conclusões são devastadoras: pelo menos 2,03 milhões de hectares pertencem a políticos. Esse é apenas o montante que pode ser comprovado, já que muitas declarações de bens informam o valor das terras, mas não a sua extensão.

Pelo cruzamento de outros dados, o jornalista projeta que o número total pode chegar a até 4,4 milhões de hectares, território semelhante ao da Suíça. Castilho denuncia, ainda, a existência de uma “esquerda latifundiária” no país e demonstra que, entre os 31 políticos que, juntos, somam 612 mil hectares, há filiados ao PT, ao PSB, ao PDT e ao PTB.

Nesta entrevista ao Sul21, Alceu Castilho comenta as informações reveladas no livro e diz que existe um “sistema político ruralista” no país, que vai muito além de uma bancada isolada no Congresso Nacional.

Sul 21 – Como surgiu a ideia de escrever esse livro?

Alceu Castilho – Morei em Brasília entre 2006 e 2007 e, nas eleições de 2006, fiz um levantamento dos bens dos deputados federais. Verifiquei todos os bens urbanos e rurais. Disso resultou uma série de reportagens revelando quantos apartamentos, carros e hectares eles tinham. A série se chamou “Câmara bilionária”, porque o valor de tudo isso era mais de R$ 1 bilhão. Nesse levantamento, o que mais me chamou a atenção foram os bens rurais.

Sul21 – Por quê?

Castilho – Primeiro, pelo volume e, por outro lado, pela discrepância. Eram valores muito baixos em uma riqueza de detalhes. Informavam não apenas os hectares, mas as cabeças de gado, o maquinário… Então resolvi aprofundar essa pesquisa. Comecei com o estado do Pará, ainda nas eleições de 2008. Nesse embalo eu levantei dados dos cinco mil prefeitos do país e dos vice-prefeitos. Então o cerne da pesquisa já estava pronto. Em 2010 fiz uma segunda parte da pesquisa, daí com os bens dos 2 mil deputados. A pré-história do livro é essa: eu comecei a perceber que os bens rurais eram bastante significativos da riqueza e do modus operandi dos políticos.

Sul 21 – Como foi feita a apuração das informações?

Castilho – Os dados estão disponíveis na internet, nos sites da Justiça Federal. O site do Fernando Rodrigues também ajuda muito. Isso permite apenas um levantamento dos bens computados. Mas nem todos estão computados. Alguns bens rurais estão registrados em outros lugares. Um exemplo clássico é a senadora Kátia Abreu (PSD-TO), que falou para a revista Época sobre alguns bens que não constam na declaração eleitoral. Isso é muito comum. Mas, considerando somente o que é informado, já dá para se ter uma bela base dados para começar. Só por esses dados já nota-se que há uma fatia enorme do território brasileiro diretamente nas mãos de políticos. A partir daí vamos procurando. Há declarações que mostram apenas os valores das terras, não o número de hectares. E há bens rurais em nomes de empresas, como no caso do senador Blairo Maggi (PR-MT), que tem uma empresa que planta mais de 200 mil hectares. Considerando somente esses bens rurais em nome de empresas de políticos, deu para constatar que existe mais de 1 milhão de hectares nas mãos de cinco políticos. Então há várias camadas de informação, umas mais apuráveis e outras menos. Mas todas compõem uma mesma história de apropriação do território brasileiro. É interessante fazer a analogia desses dados com os cidadãos comuns. Quantos hectares você tem? Quantas cabeças de gado e empresas agropecuárias um cidadão comum possui?

Sul21– Considerando as informações não disponíveis de forma clara, é possível prever que o número e a extensão das terras nas mãos dos políticos é muito maior do que aquilo que pode ser oficialmente comprovado?

Castilho – No primeiro capítulo do livro, demonstro que há pelo menos 2 milhões de hectares perfeitamente comprováveis nas mãos de políticos. E então eu faço uma projeção de que esse número pode subir para 3,3 milhões de hectares, porque vários dados informam somente o valor das terras, não a extensão. Através de uma regra de três, pela porcentagem proporcional dos valores, eu calculo que esse montante chega a 1,3 milhão de hectares. E eu somo a isso, ainda, os 1,1 milhão de hectares registrados nos nomes das empresas. Por isso esse total de terras de políticos pode chegar a 4,4 milhões de hectares.

Sul21 – Então é possível afirmar que a quantidade de terras é muito maior do que é possível provar com os documentos?

Castilho – Claro, porque ainda há os vereadores, que não entraram na minha pesquisa. A quantidade é muito maior e os próprios políticos dão pistas de que há mais terras. Dezenas de políticos se declaram agricultores ou pecuaristas e não registram um único centímetro de terra no TSE. Em outros casos declaram a terra, mas não o gado. É uma bola de neve com informações inconclusas, mas já é um ponto de partida.

Jornalista constatou aliança entre ruralistas e parlamentares de centro-esquerda. | Foto: Aquivo Pessoal / Divulgação

Sul21– Em termos partidários, como fica a distribuição dessa “bancada da terra” no país?

Castilho – O capítulo 10 do livro se chama “Movimento suprapartidário”. Para essa relação dos partidos, eu considerei somente a fatia que engloba os 2 milhões de hectares computáveis. Os partidos que possuem prefeitos eleitos em 2008 com mais terras são o PSDB (21,25%), o PMDB (19,98%), o PR (13,09%), o PP (12,5%) e o DEM (7,0%). Entre os deputados federais e estaduais, a liderança é do PMDB (21,1%), seguido pelo DEM (18,71%), pelo PR (15,42%), pelo PDT (10,13%) e pelo PTB (9,48%). Nessas duas mostras temos o PMDB sempre presente e o PSDB surpreendentemente na liderança. É surpreendente porque o PMDB é um partido maior, com mais prefeitos. Eu achava que quem ultrapassaria o PMDB seria o DEM e o PP, os filhos da Arena. É muito significativo que os filhos do MDB estejam na liderança, junto com PP e DEM, pois o PMDB se configurou como um partido de direita na redemocratização.Nessa análise há também partidos originalmente de esquerda. Entre os prefeitos, o PDT aparece em sexto lugar e o PT em oitavo, seguido pelo PPS e pelo PSB. Entre os parlamentares, a quantia de terra nas mãos dos representantes do PT é insignificante, com 1,67% do total. Mas em relação aos prefeitos petistas esse índice sobe para 5,23%. Então existe no Brasil uma esquerda latifundiária. PT, PPS, PSB e PTB possuem em seus quadros políticos com mais de 10 mil ou 20 mil hectares de terra. Eles não lideram o ranking, mas há cada vez mais casos. Só PSOL e PCdoB não possuem latifundiários, sendo que o PCdoB já teve um senador latifundiário.

Sul21 – Como tu observas a atuação desses políticos detentores de grandes extensões rurais?

Castilho – Mais do que uma bancada ruralista, existe um sistema político ruralista. Não me refiro somente a congressistas como Kátia Abreu, Abelardo Lupion ou Ronaldo Caiado, que são explicita e agressivamente defensores do agronegócio. Procuro demonstrar que esse sistema político ruralista é muito mais amplo do que uma bancada. Em meio aos cães de guarda do agronegócio existe um sistema político dependente e refém do poder dos políticos que são proprietários de terra e estão espalhados pelo Congresso, pelas prefeituras e pelas câmaras municipais. Não se trata somente de uma bancada ruralista isolada. E isso tudo nos remete ao coronelismo e aos clãs políticos. Como exemplo de atuação prática há a questão do Código Florestal. Não foram somente os políticos da bancada ruralista assumida que votaram a favor das mudanças. O PCdoB foi favorável ao novo código, que foi relatado pelo Aldo Rebelo. No ano passado, o PT recomendou o voto a favor das alterações. Neste ano houve um pouco mais de resistência, que eu chamaria de resistência de fachada. O PT votou contra, mas boa parte votou a favor. Alguns deputados do PCdoB votaram contra, mas aos 45 minutos do segundo tempo o processo já estava deflagrado. Essas decisões começam a acontecer na Comissão de Agricultura, nas costuras feitas pelos partidos. Em 2010, PSB e PV cederam a vaga que tinham na presidência dessa comissão ao DEM. Isso demonstra que há uma coalizão entre os ruralistas explícitos e os parlamentares que compactuam com eles por diversas conveniências. Podem até não ser ruralistas, mas fazem parte do sistema político ruralista.

Sul – Depois de analisar todas essas informações, fica mais fácil perceber por que a reforma agrária a não sai do papel no país?

Castilho – Esse sistema político ruralista é determinante para a ausência de reforma agrária no Brasil. Reforma agrária não é algo revolucionário. É algo que é feito por países capitalistas para consolidar o capitalismo. Durante a Constituinte, havia um embate grande entre ruralistas e não-ruralistas. Não havia ainda uma coalizão e um pacto entre esses dois setores e, nessa divisão, os ruralistas ganharam. A reforma agrária foi o grande debate da Constituinte e foi derrotada. Ali já ficou demonstrado o poder de força dos ruralistas. Na CPI da Terra, em 2005, quando investigaram a violência e o trabalho escravo no campo, os ruralistas derrotaram o relatório final e fizeram um relatório paralelo que acabou se tornando oficial. E nessa época quem estava no governo era Lula. Hoje em dia eu diria que a situação é pior do que na época da Constituinte, porque há a anuência de deputados de partidos socialistas, comunistas e trabalhistas com partidos de origem patrimonialista com grandes proprietários de terras em seus quadros. Esses políticos dependem do eleitor para perpetuar suas propriedades rurais. Para chegarem aos grotões do país e se perpetuarem no poder, eles acabam mimetizando práticas que vêm de décadas e até séculos atrás no país.

Livro foi lançado no dia 20 de agosto e contém informações de deputados federais e estaduais, prefeitos, senadores e governadores. | Foto: Diego Jock / Divulgação

Sul21– Como o financiamento de campanha influencia a postura dos políticos que são grandes proprietários de terras?

Castilho – No capítulo 14, que se chama “Eleições: mais que currais”, eu discuto a existência de currais eleitorais e a prática do voto de cabresto, típica do coronelismo. E o financiamento das campanhas são uma outra forma que os políticos encontram para se tornarem reféns de determinadas elites. A Friboi doou R$ 30 milhões para campanhas em 2010, inclusive para a campanha da presidente Dilma Rousseff (PT). Existe uma bancada da Friboi no Congresso, com 41 deputados federais eleitos e 7 senadores. Desses 41 deputados financiados pela empresa, apenas um, o gaúcho Vieira da Cunha, votou contra as modificações no Código Florestal. O próprio relator do código, Paulo Piau, recebeu R$ 1,25 milhão de empresas agropecuárias, sendo que o total de doações para a sua campanha foi de R$ 2,3 milhões. Então temos algumas questões. Por que a Friboi patrocinou essas campanhas? Para que eles votassem contra os interesses da empresa? É evidente que a Friboi é a favor das mudanças no Código Florestal. A plantação de soja empurra os rebanhos de gado para o Norte, para a Amazônia, e a Friboi tem muito interesse nisso. Será que é mera coincidência que somente um entre 41 deputados financiados pela empresa votou contra o novo código?

Sul21 – Que tipo de contribuição tu esperas dar ao debate sobre acesso à terra no Brasil com esse livro?

Castilho - É um livro jornalístico, não acadêmico. Um jornalismo sério deve iluminar aspectos importantes da realidade política. Nesse sentido, o livro traz muitos dados inéditos e compila informações que, isoladamente, não seriam inéditas. Por exemplo, em relação ao trabalho escravo. Pude constatar que há mais de 100 mil hectares nas mãos de políticos acusados de utilizarem mão-de-obra escrava.

Sul21 – Foram três anos de pesquisa para o livro. Como tu avalias a transparência dos órgãos públicos no Brasil?

Castilho – A Lei de Acesso à informação é extremamente benéfica e representa um avanço para a democracia, mas ainda há muitas brechas pelas quais os políticos podem omitir dados, sejam eles candidatos ou administradores públicos. Muitos não declaram quantos hectares de terra possuem e não são punidos por isso. A Justiça Eleitoral deveria obrigar cada candidato a declarar não só os valores de seus bens rurais, mas também o tamanho deles. que é o fato de o território brasileiro estar nas mãos de políticos.

Sul21 – O saldo final do livro, com todas as informações no papel, te surpreendeu? Ou tu já esperavas chegar a esses resultados?

Castilho – Esse sistema político ruralista me surpreendeu pela sua capilaridade. Eu não previ que o livro fosse ter capítulos sobre meio-ambiente e sobre os brasileiros mortos, escravizados ou ameaçados. Isso foi surgindo a partir da identificação dos casos. Quando eu pesquisava os latifúndios, caía em casos de trabalho escravo, de crimes ambientais, de mortes e de ameaças. Depois de todo o levantamento, o Brasil dos biomas e cidadãos violentados pela conexão dos políticos com a terra se mostrou com muito mais força para mim.

Originalmente publicado no site Sul21, 17/09/2012.


Governo libera uso de agrotóxicos sem registro no País


Mesmo com dois pareceres técnicos contrários, o Ministério da Agricultura (Mapa) liberou o uso de um agrotóxico não registrado no País para combater emergencialmente uma praga nas lavouras de algodão e soja. A decisão, publicada anteontem no Diário Oficial, permite o uso de defensivos agrícolas que tenham em sua composição o benzoato de emamectina, substância que, por ser considerada tóxica para o sistema neurológico, teve seu registro negado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2007.

O uso de agrotóxicos no País é norteado por pareceres do Comitê Técnico de Assessoramento para Agrotóxicos (CTA), formado por membros dos Ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente e da Anvisa - os dois últimos são encarregados de avaliar os riscos do uso de defensivo para o meio ambiente e a saúde pública. Em março, diante da praga da lagarta quarentenária A-1 Helicoverpa armigera em lavouras do oeste da Bahia, representantes do Mapa solicitaram uma reunião extraordinária do CTA para a liberação do benzoato. A proposta era que o produto fosse usado emergencialmente até a safra 2014/2015.

No primeiro encontro, representantes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e da Anvisa foram contrários à liberação. De acordo com a ata da reunião, a maioria do grupo afirmava que os documentos apresentados não permitiam tal liberação. Diante da negativa, o Mapa solicitou uma nova reunião, realizada cinco dias depois. Nesse encontro, tanto a Anvisa quanto o Ibama mantiveram sua posição: não havia elementos suficientes para que a liberação fosse realizada.

O Mapa, no entanto, decidiu liberar o uso do benzoato. De acordo com o ministério, não é a primeira vez que a Agricultura adota uma decisão unilateral. Em 1986, de acordo com a assessoria, também houve liberação de agrotóxicos para combater uma praga de gafanhoto.

Além do benzoato, outros cinco tiveram seu uso liberado para o combate à praga: dois produtos biológicos (Vírus VPN HzSNPV e Bacillus Thuringiensis) e três químicos (Clorantraniliprole, Clorfenapyr e Indoxacarbe). A diferença, no entanto, é que os cinco já têm registro no País para uso em outras lavouras. O uso do benzoato será regulamentado numa instrução normativa, seguindo as observações dos Ministérios do Meio Ambiente e da Saúde.

Originalmente publicado no site Estadão.com.br, 10/04/2013.


Insustentabilidade dos agrotóxicos


Autor: Frei Betto


O Brasil é o campeão mundial no uso de agrotóxicos no cultivo de alimentos. Cerca de 20% dos pesticidas fabricados no mundo são despejados em nosso país. Um bilhão de litros ao ano: 5,2 litros por brasileiro! Ao recorde quantitativo soma-se o drama de autorizarmos o uso das substâncias mais perigosas, já proibidas na maior parte do mundo por causarem danos sociais, econômicos e ambientais. Pesquisas científicas comprovam os impactos dessas substâncias na vida de trabalhadores rurais, consumidores e demais seres vivos, revelando como desencadeiam doenças como câncer, disfunções neurológicas e má formação fetal, entre outras. Aumenta a incidência de câncer em crianças. Segundo a oncologista Silvia Brandalise, diretora do Centro Infantil Boldrini, em Campinas (SP), os pesticidas alteram o DNA e levam à carcinogênese. O poder das transnacionais que produzem agrotóxicos (uma dúzia delas controla 90% do que é ofertado no mundo) permite que o setor garanta a autorização desses produtos danosos nos países menos desenvolvidos, mesmo já tendo sido proibidos em seus países de origem. As pesquisas para a emissão de autorizações analisam somente os efeitos de cada pesticida isoladamente. Não há estudos que verifiquem a combinação desses venenos que se misturam no ambiente e em nossos organismos ao longo dos anos. É insustentável a afirmação de que a produção de alimentos, baseada no uso de agrotóxicos, é mais barata. Ao contrário, os custos sociais e ambientais são incalculáveis. Somente em tratamentos de saúde há estimativas de que, para cada real gasto com a aquisição de pesticidas, o poder público desembolsa R$ 1,28 para os cuidados médicos necessários. Essa conta todos nós pagamos sem perceber. O modelo monocultor, baseado em grandes propriedades e na utilização de agroquímicos, não resolveu nem irá resolver a questão da fome mundial (872 milhões de desnutridos, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura %u2014 FAO). Esse sistema se perpetua com a expansão das fronteiras de cultivo, já que ignora a importância da biodiversidade para o equilíbrio do solo e do clima, fazendo com que as áreas utilizadas se degradem ao longo do tempo. Ele cresce enquanto há novas áreas a serem incorporadas, aumentando a destruição ambiental e o êxodo rural. Em um planeta finito, assolado por desequilíbrios crescentes, a terra fértil e saudável é cada vez mais preciosa para garantir a sobrevivência dos bilhões de seres humanos. Infelizmente não há meio-termo nesse setor. É impossível garantir a qualidade, a segurança e o volume da produção de alimentos dentro desse modelo degradante. Não há como incentivar o uso correto de pesticidas. Isso não é viável em um país tropical como o Brasil, em que o calor faz roupas e equipamentos de segurança, necessários para as aplicações, virarem uma tortura para os trabalhadores. Há que buscar solução na transição agroecológica, ou seja, na gradual e crescente mudança do sistema atual para um novo modelo baseado no cultivo orgânico, mantendo o equilíbrio do solo e a biodiversidade, e redistribuindo a terra em propriedades menores. Isso facilita a rotatividade e o consórcio de culturas, o combate natural às pragas e o resgate das relações entre os seres humanos e a natureza, valorizando o clima e as espécies locais. Existem muitas experiências bem-sucedidas em nosso país e em todo o mundo, que comprovam a viabilidade desse novo modelo. Até em assentamentos da reforma agrária há exemplos de como promover a qualidade de vida, a justiça social e o desenvolvimento sustentável. Para fomentar esse debate, e exigir medidas concretas por parte do poder público, foi criada, em abril de 2011, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Dela participam cerca de 50 organizações, como a Via Campesina, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Federação dos Trabalhadores do Ramo Químico da CUT no Estado de São Paulo (Fetquim). Confira o site na internet: www.contraosagrotoxicos.org. A campanha visa à conquista da verdadeira soberania alimentar, para que o Brasil deixe de ser mero exportador de commodities (com geração de grandes lucros para uma minoria e imensos danos à população) para se tornar um território em que a produção de alimentos se faça com dignidade social e de forma saudável. A outra opção é seguir nos iludindo com os falsos custos dos alimentos, envenenando nossa terra, reduzindo a biodiversidade, promovendo a concentração de renda, a socialização dos prejuízos e a criação de hospitais especializados no tratamento de câncer, como ocorre em Unaí (MG), onde se multiplicam os casos dessa gravíssima doença, devido ao cultivo tóxico de feijão.

Fonte: Correio Braziliense - 12/04/2013.


Evento destaca preservação da diversidade biocultural


Autor: Fernanda B. Müller

Organização dos produtores familiares em redes, certificação das produções agroecológicas e parcerias com programas de ecoturismo e ecogastronomia são apontadas como alternativas para garantir a sobrevivência de comunidades tradicionais

Agricultores, pescadores, pesquisadores e representantes governamentais se reuniram na quinta-feira (28) em Florianópolis para discutir soluções visando à salvaguarda dos saberes tradicionais, da história e do meio ambiente através da construção de novas práticas econômicas apoiadas na preservação de uma diversidade biocultural.

Imagem: Cepagro

O evento foi promovido pelo CEPAGRO – Centro de Estudos e Promoção da Agricutura de Grupo - ONG que atua há 23 anos promovendo a agroecologia na América Latina - em parceria com o Convivium Mata Atlântica, um grupo de gastrônomos e chefes de cozinha que organiza expedições gastronômicas de valorização dos pequenos produtores e matérias-primas locais. Estas instituições fazem parte e recebem o apoio da Fundação SLOW FOOD para a biodiversidade, um movimento internacional de promoção do alimento “bom, limpo e justo”.

O movimento Slow Food está presente em mais de 150 países e visa mudar os hábitos insustentáveis e nada saudáveis perpetuados atualmente pela economia de mercado. Entre os princípios do movimento estão a preservação ambiental, a produção local, o incentivo a salvaguarda dos conhecimentos tradicionais e o reconhecimento dos produtores da agricultura familiar.

Para cumprir com este cenário, várias abordagens podem ser assumidas, como a organização dos produtores familiares em redes, a certificação das produções agroecológicas e parcerias com programas de ecoturismo e ecogastronomia.

“A gastronomia é uma ponte para viabilizarmos projetos de desenvolvimento territorial com identidade biocultural”, coloca Lia Poggio, coordenadora do Slow Food na América Latina. Ela apresenta vários casos onde este conceito é colocado em prática. Um deles é o da Sociedade Gastronômica Peruana, que busca valorizar a história e fazer com que os peruanos se identifiquem culturalmente com a culinária do país.

Na Itália, iniciativas parecidas também beneficiam produtores e produtos locais, incentivando sinergias entre a agricultura sustentável, a defesa do meio ambiente e o ecoturismo/ecogastronomia. A Rota dos Sabores é muito frequentada, não apenas por turistas estrangeiros como pelos próprios italianos, que valorizam muito a culinária local de qualidade.

Segundo Poggio, o sucesso no caso italiano é fruto de um longo processo cultural e econômico, que, contando com o apoio do poder público e da sociedade civil, considera o produtor local como o ator fundamental para a preservação ambiental e cultural.

No Brasil, atuando nos três estados do Sul, a Rede Ecovida foi formada para facilitar a comercialização de alimentos de base ecológica provenientes da agricultura familiar. Diminuindo a participação de intermediários através da estruturação da comercialização, a rede agrega mais valor ao produto na busca dos chamados ‘preço justo’ – aquele que maximiza o bem estar do produtor e do consumidor – e ‘circuito curto’ – onde o consumidor se beneficia com produtos frescos e o produtor consegue preços melhores.

A certificação da Rede Ecovida tem uma característica peculiar para garantir a conformidade orgânica e tornar o sistema acessível aos agricultores, o Sistema Participativo de Garantia – em conformidade com o Decreto Federal 6.323, de 2007. O fortalecimento de Organismos de Controle Social, como grupos de agricultores, é uma das bases do Sistema Participativo de Garantia, diferenciando-o das certificações por auditoria. Mais do que uma fiscalização, o sistema permite uma intensa troca de experiências e saberes.

“Os próprios agricultores e consumidores fazem a certificação, gerando credibilidade. Um agricultor se responsabiliza pelo outro, assim como os consumidores, através da organização”, explicou Charles Lamb, atual coordenador do CEPAGRO e membro da Rede Ecovida de Agroecologia através do Núcleo Litoral Catarinense.

Em Santa Catarina, a Rede Ecovida é integrada por 58 famílias da região litorânea, que cultivam mandioca e derivados, banana, hortaliças, batatas, flores de corte, leite, mel, ovos, frutas, queijos, doces, derivados de aloe vera, sucos e geleias.

Aproximar produtores e consumidores, oferecer alimentos saudáveis a preços justos e gerar alternativas de diversificação produtiva para famílias fumicultoras - cultura ao qual se dedicam cerca de 55 mil famílias só em Santa Catarina, sendo o segundo maior produtor nacional de fumo -, são os objetivos centrais do movimento agroecológico catarinense.

Cultura e produtos locais

No movimento catarinense, dois setores em particular se destacam no 'slow food' e vem buscando resgatar suas origens, os engenhos artesanais de farinha de mandioca e a pesca artesanal.

O CEPAGRO e a ONG Ponto de Cultura – Engenhos de Farinha, trabalham em parceria com a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI) e com a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (CIDASC) visando adequar os engenhos artesanais às normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), um desafio para um setor sem muitos recursos financeiros.

Além disso, as organizações estão iniciando junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) o processo de pedido de registro dos engenhos de mandioca como ‘Patrimônio Imaterial’, visando o reconhecimento e a valorização do processo artesanal.

Os Bens Culturais de Natureza Imaterial dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas).

Os engenhos de farinha “sempre estiveram à margem das políticas de governo, o que se tem é o que o que o agricultor soube preservar”, coloca Enilto de Oliveira Neubert, da EPAGRI.

Wladimir Marcon Mendes, da CIDASC, nota que o produto catarinense tem um diferencial de qualidade visto que os produtores locais, buscando se aproximar das características da farinha de trigo, acabaram se especializando em fabricar uma farinha de mandioca mais fina.

Slow Fish

Para a pesca, assim como para a agricultura, o Slow Food visa se distanciar da exploração intensiva dos recursos naturais. Com este espírito, a campanha internacional Slow Fish multiplica as iniciativas que valorizam os protagonistas da pesca artesanal e as espécies pouco valorizadas no mercado, estimulando uma reflexão sobre o estado e a gestão das reservas pesqueiras (saiba mais).

Na última na sexta-feira santa e no dia de Páscoa, o movimento lançou um desafio para o uso de receitas com peixes que não estejam em período de reprodução e nem em risco de extinção (como o atum azul, salmão do Atlântico e salmão de cultivo, camarões tropicais, peixe espada), e que sejam locais, isto é, capturados no mar ou lagoas próximos.

Durante o evento, pescadores artesanais deram seus testemunhos de luta para a manutenção e constituição de Reservas Extrativistas (RESEX), uma categoria de Unidades de Conservação de Uso Sustentável, conforme a Lei No 9.985, de 18 de julho de 2000.

A Reserva extrativista marinha do Pirajubaé foi a primeira a ser constituída como tal no país, porém enfrenta desafios constantes face à especulação imobiliária que toma conta da capital catarinense. Na reserva se encontra o maior banco natural de berbigão do mundo, produzindo cerca de 100 toneladas ao mês.

“O governo não quer cuidar do meio ambiente”, desabafa Alcemir Martins, presidente da Aremar (Associação da Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé). Ele teme que os interesses econômicos levem ao fim da reserva e retire o sustento das famílias que hoje conseguem sobreviver bem com a pesca.

Em Ibiraquera, um movimento forte dos pescadores artesanais está tentando trilhar o caminho de Pirajubaé, porém, esbarrou nos interesses imobiliários e apesar de já estar consolidada como proposta, a RESEX de Ibiraquera ainda não conseguiu a aprovação junto ao governo federal.

“A discussão é muito mais do que dinheiro, é a alegria da qualidade de vida. Estamos remando contra a maré neste mundo que só quer consumir”, lamentou Maria das Graças Ferreira, representante catarinense na Comissão Nacional Resexs Marinhas. “Os pescadores tiveram a iniciativa, foram atrás da RESEX que abrange desde da Barra de Ibiraquera até a Praia da Ferrugem. Foi tranquilo, até que o prefeito, governador e especuladores viram que teríamos muita autonomia”, enfatizou.Imagem: Cepagro

Originalmente postado no site InstitutoCarbonoBrasil, 02/04/2013.