O cineasta Silvio Tendler, autor do documentário ‘O veneno está na mesa’ |
O programa do congresso dedicou um dia inteiro de discussões ao Dossiê
Abrasco sobre impacto dos agrotóxicos na saúde, cuja terceira parte,
Agrotóxicos, conhecimento científico e popular, foi lançada na tarde de
16 de novembro — em março de 2011 realizou-se o lançamento da primeira
parte, Agrotóxicos, saúde, segurança alimentar e nutricional; a segunda,
lançada durante a Rio+20, em junho de 2012, trata de Agrotóxicos, saúde
e sustentabilidade. Na parte da manhã, o assunto foi debatido em sessão
especial, que contou com o então presidente da Abrasco, Luiz Augusto
Facchini. Ele destacou o fato de o Brasil ser o maior consumidor de
agrotóxicos no mundo, titulo do qual o país não deve se orgulhar.
“Gostaríamos de reverter esse quadro, diminuir a dependência do pequeno
agricultor e fortalecer a base da saúde”, disse, defendendo maiores
investimentos na capacidade da agricultura familiar e da agroecologia e a
maior formação de pesquisadores nas duas áreas.
O dossiê foi construído com a contribuição de vários grupos de trabalho
da Abrasco (Saúde e ambiente, trabalho, nutrição, promoção à saúde e
vigilância sanitária) e de pesquisadores de diversas instituições do
país, sistematizando a produção sobre os impactos dos agrotóxicos à
saúde. De acordo com Facchini, o documento apresenta conexões entre o
grande capital e o processamento e industrialização desses produtos, bem
como sua relação com a alimentação das pessoas. “Enfrentar o grande
capital não é tarefa fácil, mas é possível”, salientou, lembrando os
progressos na luta contra o tabagismo e a favor do banimento do amianto,
também danosos à saúde. “Esses interesses suplantam a civilidade em
nome do ganho fácil, mesmo que submeta a população ao envenenamento”,
denunciou.
Hegemonia que aprisiona
O pesquisador Fernando Carneiro, do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva
(Nesp/UnB) comemorou o compartilhamento do dossiê com os 8 mil
congressistas, lembrando que o documento é uma reação do movimento
social à hegemonia do agronegócio, um modelo que aprisiona o agricultor.
“Há dez anos, 30% do que consumimos está contaminado”, disse Fernando,
informando que já foi detectada a presença dessas substâncias até no
leite materno e assinalando a pertinência do material. Segundo ele,
existem 14 princípios ativos proibidos no mundo ainda consumidos no
Brasil, o que reforça a necessidade de priorizar uma Política Nacional
de Agroecologia.
O pesquisador afirmou que, com o dossiê, a comunidade científica cria um
fato político no país, chamando a atenção da mídia e criando um
documento histórico sobre o assunto. Além disso, o documento aumenta a
interlocução entre sociedade, academia e mídia. “Epidemiologistas e
militantes estão juntos, construindo uma semântica própria em defesa da
vida”.
Fernando acenou com a possibilidade de, em futuro próximo, produzir-se
um dossiê similar sobre o problema no continente latinoamericano, onde
são consumidos 19% dos agrotóxicos no mundo. Os impactos vão além do
envenenamento, acentuou, lembrando que em 2010 o agricultor José Maria
do Tomé foi assassinado na Chapada do Apodi, em Limoeiro do Norte (CE),
por denunciar os impactos do uso indiscriminado de agrotóxicos na
região.
Conquista da mídia
O cineasta Silvio Tendler, autor do documentário O veneno está na mesa, declarou ser impossível não avançar na luta contra os agrotóxicos
com um time de cientistas e agricultores de tamanha qualidade, “pessoas
que lutam pela qualidade da saúde no país”. Para ele, a maior batalha a
ser enfrentada seria conquistar a mídia para mobilizar toda a sociedade.
“Não odeiem a mídia”, declarou.
Silvio comemorou o fato de seu documentário já ter sido acessado por cerca de 100 mil pessoas na rede social Youtube, além das inúmeras cópias que podem ter sido feitas e dos acessos em outros sites e blogs. “A batalha contra os agrotóxicos não é problema dos especialistas, mas de toda a sociedade. É uma batalha de comunicação”, definiu.
Ele criticou o fato de governos progressistas utilizarem recursos oriundos da produção de agrotóxicos como um dos seus sustentos e alertou que a paisagem brasileira está mudando para pior por conta do agronegócio. Se em Grande sertão: veredas o escritor Guimarães Rosa descrevia as veredas, lembrou, hoje, elas se transformaram em eucalipto. “Além dos rios desertificados em nome de um poder financeiro”, apontou. “Temos que demonstrar que este modelo é perverso e prejudicial à vida no Brasil”, conclamou, lembrando que “seremos vitoriosos se soubermos trabalhar com a comunicação”.
Ponta de iceberg
Integrante da Articulação Nacional de Agroecologia, o pesquisador Paulo
Petersen constatou que o momento é de aprendizado, pois o dossiê indica
“uma nova forma de produzir conhecimento, para além do conhecimento
científico”, aliada a outros saberes. Essa sinergia, segundo ele, produz
algo superior, já que se transforma em munição para ação política e
diálogo entre os movimentos sociais. “Encontrar e perceber convergências
já foi um grande passo”, elogiou, advertindo que é necessário que o
produto seja compartilhado. “Temos que aprender a viver o território da
comunicação”, assinalou. Neste contexto, ele acredita que a capacidade
de produzir novas mídias faz grande diferença.
O pesquisador alertou que é preciso entender que a questão dos
agrotóxicos é apenas a ponta de um iceberg, “uma ameaça ao modelo que se
afirmou em dez milênios sem uma gota de agrotóxico”. Para ele, não há
como entender essa ameaça sem considerá-la uma grande construção
ideológica, que indica a mudança de um paradigma econômico para um
paradigma químico — e encontra eco no projeto de substituir a indústria
bélica pela indústria química. A base legitimadora desse processo,
assinala, “é o discurso de acabar com a fome do mundo” e o
questionamento sobre a capacidade da agroecologia de alimentar 9 bilhões
de pessoas. “A pergunta correta é: será que este modelo industrial é
capaz disso? Se já não é capaz hoje, como pode prometer que será em
2050?”.
Paulo lamenta que a agroecologia não seja reconhecida por sua capacidade
de produzir alimentos e cultura, além de preservar o meio ambiente.
Tudo isso por ter em sua base a agricultura camponesa, que tem uma forma
de produzir distinta e trava uma relação diferente com o território e
com a biodiversidade. Ele ressaltou que fala de agricultura familiar,
que não pode ser confundida com agricultura de nicho. “Não estamos
falando na substituição de agrotóxicos por tecnologia para matar
pragas”. Ele se refere ao aproveitamento de princípios ecológicos de
maneira natural, uma “regulação biótica”. “Nunca tivemos tanto
conhecimento acumulado, mas é preciso evitar a apropriação dos conceitos
da agroecologia pelo mercado”.
Harmonia dos saberes
À tarde, durante o lançamento oficial do dossiê, a médica Raquel
Rigotto, pesquisadora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e
integrante do grupo que construiu o documento, destacou que o trabalho
valorizou o encontro com os saberes populares, camponeses e
tradicionais. “Procuramos as experiências construídas por essas
comunidades de alternativas a esse modelo de desenvolvimento,
especialmente no campo da agroecologia, entendida não só como um
processo de produção de alimentos livres de agrotóxicos, mas alimentos
livres de injustiça social”, explicou. Para ela, são estes alimentos que
contêm reforma agrária, promoção da equidade, contemplam a questão de
gênero, a saúde das populações camponesas, a preservação da
biodiversidade e o cuidado com as fontes de água.
Quem assina o prefácio do dossiê é o pesquisador português Boaventura
Sousa Santos, que define a metodologia de construção como ecologia de
saberes. “Não basta somente reunirmos todo o conhecimento científico
produzido pela ciência moderna, mas construirmos um verdadeiro diálogo
entre as vozes que emergem dos territórios e que nos trazem informações
que não estão nas grandes bases de dados oficiais”, escreveu,
referindo-se às cartas e depoimentos assinados por pessoas atingidas
pelos agrotóxicos e adeptas da agroecologia.
Matéria na revista Radis, edição n° 125, de fevereiro de 2013, publicada pelo EcoDebate, 08/02/2013.
Acesse o Dossiê Abrasco: http://greco.ppgi.ufrj.br/DossieVirtual/
Para saber mais:
Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida
Para saber mais:
Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida
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