Restos
de alimento viram material orgânico que alimenta horta no teto do Eldorado, em São Paulo. Empreendimento
pretende zerar produção de resíduos em cinco anos
Por:
Tadeu Breda, da Rede Brasil Atual
São
Paulo – Tudo começa com a fome, aquele ronco no estômago que faz todo mundo –
os que podem – interromper seus afazeres na hora do almoço para encarar um
prato de comida. No shopping Eldorado, zona oeste de São Paulo, mais ou menos 6
mil pessoas lotam a praça de alimentação diariamente para acalmar seus
instintos. Têm à disposição restaurantes japoneses, americanos, mineiros e
australianos, sem contar lanchonetes e docerias. Mas nem todo mundo dá conta de
comer o que pede, e é no rescaldo do incessante sobe-e-desce dos garfos que a
administração do lugar resolveu investir.
O agrônomo Rui Signore trabalha para forrar o teto do shopping Eldorado de hortas medicinais e comestíveis (Foto: Gerardo Lazzari/RBA) |
Cerca
de R$ 4,5 mil mensais são necessários para que todo alimento jogado fora pelos
clientes do Eldorado em seu cotidiano périplo culinário deixe de ser
encaminhado aos aterros sanitários e vá parar lá em cima, no telhado, onde vira
terra para horta. Essa foi a maneira que o shopping encontrou para reduzir o
desperdício: aproximadamente 400 quilos de comida descartada todo santo dia.
Dariam para servir umas 800 refeições e aplacar fomes por aí, mas passaram por
pratos e bocas alheias, e seu destino natural seria o lixo. "Sabe aquele
restinho nojento de arroz que fica na pia? Aquilo que na casa da gente nem
gostamos de mexer?", compara o agrônomo Rui Signore, um dos engenheiros
responsáveis por levar adiante o reaproveitamento de material orgânico no
Eldorado. "É um dos piores resíduos que existem. Ninguém quer trabalhar
com isso."
Mas
não precisou de muita insistência para que os donos do shopping gostassem da
ideia. Claro que, no começo, tiveram reservas. "Havia algumas dúvidas
operacionais", explica, ressaltando que um projeto-piloto, iniciado em
fevereiro de 2012, acabou com todos os impasses. "Fizemos testes por um
mês e medimos os resultados. Acompanhamos temperatura, cheiro e quantidade de
insetos. Ficou tudo sob controle." Quando a fase experimental terminou e
os resultados foram apresentados à chefia, os patrões perguntaram: É só isso? "A
simplicidade às vezes é um problema", avalia Tiago Silva, engenheiro civil
do shopping. "O procedimento é tão simples que as pessoas nem acreditam
que seja possível."
Agora,
todo resto de comida que sai da praça de alimentação é colocado em sacos
marrons e levado por funcionários à parte de trás do shopping – um ambiente
hostil, escuro e barulhento, meio encardido, que nada tem a ver com os pisos
reluzentes e as vitrines iluminadas que ficam à mostra da clientela. Já num
contêiner, a comida descartada sobe um elevador até a unidade de reciclagem.
Nada extraordinário: uma salinha três por três com grandes caixotes de
plástico, sacos de serragem e uma betoneira igual às utilizadas nos canteiros
de obra para bater argamassa.
Caminho do lixo
O
primeiro passo é misturar aquele monte de arroz, feijão, hambúrguer, pão, osso
de frango, salada – tudo – com serragem. "Compramos de uma madeireira da
região", conta Rui. "E tem de ser de madeira certificada. Afinal,
estamos trabalhando com ecologia." O agrônomo explica que, sem os
restos de madeira, a comida se transforma num grande purê – e a compostagem não
funciona: o material apodrece, empesteia o ambiente e junta bicho.
"Precisamos da serragem para retirar a umidade e dar balanço ao composto."
Os restos de comida da praça de alimentação são separados e levados para um centro de processamento (Foto: Gerardo Lazzari/RBA) |
Depois
vem o ingrediente secreto: uma mistura de bactérias especialistas em comer e
digerir resíduos orgânicos com grande rapidez. "São enzimas produzidas por
pesquisadores da Universidade Federal de Uberaba, em Minas Gerais, e que
aceleram muito o processo." Tudo então é levado à betoneira e misturado
por seis horas. O que sai da máquina é um material homogêneo e amarronzado – a
cor vem da serragem e das enzimas –, com cheiro de comida industrializada que
lembra os molhos especiais da cadeia de lanchonetes mais famosa do mundo.
Nenhum odor que inspire nojo ou faça lembrar de lixo – muito menos do lixo
doméstico que temos em casa e, com a ponta dos dedos, levamos até a rua
pingando.
Da
unidade de reciclagem, o composto é levado para o teto, onde passa mais uns
dias descansando sob a intempérie. "Com o sol, a mistura atinge até 70
graus", diz Rui. "Preciso dessa temperatura para esterilizar." O
que havia de possíveis vetores morre no calor intenso e pronto: basta semear.
Em 30 dias, recebendo chuva e vento, e mais sol, os restos de comida reciclados
pelo shopping viram terra – inclusive com cheiro de terra, para tristeza de
quem tinha gostado da ideia de plantar sobre uma mistura com aroma de
hambúrguer e, de repente, conseguir quiabos mais adaptados ao paladar infantil.
Agora
mesmo crescem nos dois canteiros do Eldorado berinjelas, tomates, abóboras,
jilós, manjericão, confrei, hortelã, erva cidreira e outras plantas medicinais
que, promete o agrônomo, se transformarão muito brevemente em chá na mesa de
cada funcionário do lugar. Por enquanto sobra espaço no teto, mas a intenção é
forrar a laje de hortas. "Temos 9.500 metros quadrados
de telhado. Isso é quase 1
hectare", compara Rui. "Não é todo mundo que
tem uma fazenda em plena avenida Rebouças." E ainda menos uma fazenda com
cheiro de batata frita, porque é pelo telhado que escapam os exaustores de todo
o shopping, trazendo as nuvens de gordura das cozinhas.
Autossustentável
Também
é lá em cima que se encontra o condensador do sistema de refrigeração de ar,
uma cachoeira que, segundo Sérgio Nagai, gerente de operações, descarta 100 mil
litros de água por dia apenas para manter a temperatura amena na parte de
dentro. Futuramente, quando caixotes cheios de composto orgânico estiverem
espalhados por toda a extensão da laje, alimentando as plantas, o Eldorado
pretende reutilizar a água do ar condicionado para irrigá-las. Há outros
benefícios no horizonte. "Com o telhado verde, você consegue diminuir em
até um grau a temperatura interna do shopping e reduzir o consumo de energia
elétrica com ar condicionado", contabiliza Nagai. "Com a compostagem,
também aumentamos a venda do material reciclável."
A comida descartada é mesclada com serragem e enzimas antes de virar 'terra' (Foto: Gerardo Lazzari/RBA) |
O
gerente de operações diz que, depois que começou a reutilizar o lixo orgânico,
o shopping evita que restos de comida "sujem" plásticos, papéis,
vidros e metais comercializados com os centros de triagem – e que só podem ser
enviados para reciclagem se estiverem limpos. Colocando tudo na ponta do lápis,
a conta vale a pena. "Entre economia de energia e aumento na venda de
recicláveis, uma coisa compensa a outra e o investimento com a horta fica no
zero a zero" – e com o saldo adicional de poupar o meio ambiente de 50
toneladas mensais de comida estragada, diferença já sentida pela administração.
O
objetivo dos engenheiros do Eldorado é que, dentro de cinco anos, não haja mais
caminhões de lixo saindo das garagens do shopping. Hoje, porém, o
empreendimento ainda manda para os aterros sanitários paulistanos entre 250 e
300 toneladas de resíduos sólidos por mês. "É um volume muito
grande", reconhece Nagai. "Reciclamos apenas 19% de tudo o que
produzimos aqui." O gerente de operações lembra que o Plano Nacional de
Resíduos Sólidos, sancionado pelo governo federal em 2004, obriga estruturas gigantescas,
como shoppings centers, a darem uma destinação adequada para o lixo. Mas não há
nenhuma legislação que determine a implementação de hortas.
"O
teto verde veio para solucionar o problema que teríamos com a reciclagem dos
restos de comida e da praça de alimentação. Era uma quantidade muito grande de
composto", revela. Nagai imagina o dia em que os próprios restaurantes do
shopping poderão utilizar alguns produtos cultivados ali mesmo, na horta do
telhado, para compor seus pratos. "Seria sensacional", vislumbra.
"Transformar lixo em comida parece uma ideia meio maluca, mas depois que a
gente vê a horta nascendo, sabe que é perfeitamente possível."
Originalmente
postado no site Rede Brasil Atual, 04/04/2013.
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