Autor:
Fernanda B. Müller
Pescadores artesanais de Florianópolis
são vítimas de projetos mal planejados e do descaso do poder público, em mais
um exemplo da desvalorização da rica cultura dos povos tradicionais no Brasil
Em
nosso país, onde tudo o que é internacional é extremamente valorizado, cada vez
fica mais difícil de encontrar as raízes das culturas tradicionais que
construíram a imagem da nação.
De
norte a sul, indígenas e pequenas comunidades locais são massacrados pela
ganância do agronegócio e pela inconsequência do crescimento desenfreado,
sofrendo com a falta de planejamento e com o desrespeito aos seus simples modos
de viver.
É
o caso dos pescadores da comunidade de Ratones, na Ilha de Santa Catarina.
Forçados a abandonar a pesca como única atividade, hoje eles não encontram mais
peixes nem mesmo para o consumo próprio.
Assim
como em muitos locais da Ilha, o Rio Ratones sofreu uma série de modificações
ao longo dos últimos cinquenta anos. A retificação e a construção de duas
pontes (foto) com comportas mudaram definitivamente a dinâmica do rio, que
antes chegava a fornecer até 30 quilos por dia de camarão – hoje não passa de
um, lamentam os pescadores.
Sem
o fluxo que tinha antigamente, o leito do rio está assoreando, com bancos de
areia e camadas de matéria orgânica tornando a sua navegação com embarcações de
pequeno porte uma tarefa que demanda extrema atenção e força – pois muitos
pontos exigem o uso apenas do remo.
A
quantidade de matéria orgânica na água parada é um dos principais motivos para
a queda na pesca do camarão, apontam os pescadores. A construção das comportas
é outro elemento crítico.
“Antes
das comportas muitas pessoas viviam da pesca e da roça, a alimentação era
tirada do rio, hoje não tem mais”, lamentou Valmir Euclides, vice-presidente da
Associação dos Pescadores do Rio Ratones.
Sem
considerar a tradicional atividade de pesca na região, as comportas foram
instaladas e barraram a passagem dos peixes maiores rio acima. Onde antes se
pescavam cardumes de tainha, hoje apenas se encontram juvenis.
“Nós
temos consciência de que não podemos pescar esses peixes pequenos, o pescador
sabe que para se ter o adulto, precisa preservar os jovens”, coloca Euclides.
"Aqui
era rico em robalo", comentou Orlando Domingos Silva, presidente da Associação
de Pesca do Ratones.
Outro
conflito na área é que na jusante do rio, a partir das comportas, onde se
encontram os peixes adultos, foi criada a Estação Ecológica Carijós (ESEC).
Sendo uma Unidade de Conservação de proteção integral, não se pode pescar na
ESEC, e os pescadores têm plena consciência da sua importância.
Na
área do rio em que é permitida a pesca, fora dos limites da ESEC, para a
circulação da água o principal problema foi a retificação do canal, e para os
peixes, o que impede a sua subida são as comportas, explica Orlando.
Uma
das comportas chegou a ter as suas portas removidas, porém a laje de concreto
permanece barrando os peixes adultos. Antes da retirada destas portas, entre a
década de 1960 e 1990, o manguezal definhava rio acima já que a água salgada
era barrada no momento da subida da maré.
"Todo
esse manguezal, quando fizeram as comportas, nós perdemos, eu conheci isso aqui
um mar de lama por que toda a vegetação de água salobra morreu. Com a retirada
das comportas, começou a circular água salobra de novo e voltou essa
paisagem", comentou Orlando.
“Faz
uns dez anos, se não tirasse a comporta não existia manguezal lá em cima hoje,
nem peixe, porque era água doce pura, estaria mais assoreado ainda”, ressaltou
Euclides.
A
luta da Associação de Pesca do Ratones há quase vinte anos é que o rio seja
revitalizado, com a remoção das comportas e a retomada do seu curso natural. Na
sexta-feira (20), a associação realizará um evento, chamando diferentes esferas
do poder público para tomar conhecimento da situação e agir.
Apesar
de todos os problemas, a riqueza da região salta aos olhos de quem está
acostumado a andar nas praias de Florianópolis, em sua maioria intensamente
impactadas pela especulação imobiliária.
O
manguezal do Ratones, incluído em parte na ESEC, tem um porte e uma riqueza
surpreendentes. Garça-moura, águia-pescadora, martim-pescador,
gavião-pega-macaco, lontra, jacaré-de-papo-amarelo, caranguejos e ostras são
apenas alguns exemplos dos tesouros desse local.
No
caso do Ratones, assim como em milhares de outros ao redor do país, a dura
empreitada dos pescadores enfrenta o descaso do poder público, que ignora o
suplício dos povos tradicionais.
Além
de contribuírem para a preservação dos ecossistemas e da cultura local –
especialmente quando têm apoio do poder público –, essas populações mostram que
se respeitados os seus direitos e os recursos dos quais dependem, é possível
viver de forma simples.
Dependendo
dos recursos que o ambiente lhes oferece, essas populações, que têm uma visão
ímpar e coletiva da vida – longe do individualismo e materialismo
despropositado de grande parte da população –, são forçadas a se deslocar para
as cidades.
A
busca por alternativas os distancia completamente do modo autossustentável de
sobrevivência que esses povos costumavam ter. Uma perda tanto para eles quanto
para a sociedade, que apaga cada vez mais a sua história e esquece sua cultura
e seus valores.
O
local paradisíaco que muitos brasileiros sonham em conhecer e habitar há muito
perdeu o jeito simples de conviver com a riqueza natural que o cerca.
Fotos:
Fabrício Basílio
Publicado
originalmente no site Instituto CarbonoBrasil, 20/03/2013.
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