O
eminente economista brasileiro Celso Furtado, no livro “O mito do
desenvolvimento econômico”, considerava que os países da periferia do sistema
capitalista seriam incapazes de reproduzir o padrão de consumo dos países
ricos, pois o padrão de desenvolvimento afluente não seria generalizável para a
maioria da população mundial:
(…) que acontecerá se o desenvolvimento
econômico, para o qual estão sendo mobilizados todos os povos da terra, chegar
efetivamente a concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida dos povos
ricos chegam efetivamente a universalizar-se? A resposta a essa pergunta é
clara, sem ambiguidades: se tal acontecesse, a pressão sobre os recursos não
renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem (ou
alternativamente, o custo do controle da poluição seria tão elevado) que o
sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso (Furtado,1974, p. 19).
O custo, em termos de depredação do
mundo físico, desse estilo de vida, é de tal forma elevado que toda tentativa
de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização,
pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana. (…) a
ideia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos
atuais povos ricos – é simplesmente irrealizável. Sabemos agora de forma
irrefutável que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido
de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. (…)
Cabe, portanto, afirmar que a ideia de desenvolvimento econômico é um simples
mito (Furtado, 1974, p. 75).
Estas
palavras foram publicadas em 1974, ano em que a população mundial atingiu 4
bilhões de pessoas e os países desenvolvidos tinham menos de um bilhão de
habitantes. Para Celso Furtado, o desenvolvimento seria uma realidade para os
países do Primeiro Mundo, mas um mito inalcançável para os países do Terceiro
Mundo, pois com a pressão sobre os recursos naturais não haveria como
satisfazer toda a demanda global.
Contudo,
o desenvolvimento econômico – baseado na ampliação dos níveis de consumo
conspícuo –continuou crescendo e se ampliando, mesmo depois da crise do
petróleo da década de 1970. De 1974
a 2012 o PIB mundial cresceu 3,5 vezes (dados de Angus
Maddison), enquanto a população mundial passou de 4 bilhões para 7,1 bilhões de
habitantes, sendo que a “novidade dos anos 2000 foi o crescimento mais rápido
dos países emergentes” (Alves, 2013). Nos países em desenvolvimento a esperança
de vida ao nascer passou de 55 anos em 1970 para 66 anos em 2010 e a
mortalidade infantil caiu de 105 mortes por mil nascimentos para 50 por mil, no
mesmo período. Houve também avanços na educação e nas moradias.
Desta
forma, o crescimento econômico mais acelerado dos países em desenvolvimento tem
possibilitado o crescimento da chamada “nova classe média emergente”. Por
exemplo, o estudo da firma de consultoria Mckinsey “Winning the $30 trillion decathlon: going for gold in emerging markets”
(2012) mostra os avanços no aumento do mercado consumidor global, tendo sido
publicado para mostrar para as empresas produtoras de bens industrializados e
serviços como conquistar os novos consumidores das novas classes com poder de
compra no mundo.
Utilizando
o critério de renda de 10 dólares diários (em poder de paridade de compra –
ppp), a McKinsey calcula que a “classe consumidora” era de 300 milhões de
pessoas, em 1950, representando 12% da população mundial de 2,5 bilhões de
habitantes. Em 1970 – pouco antes da publicação do livro de Celso Furtado, a “classe
consumidora” era de 900 milhões de pessoas, representando 25% da população
mundial de 3,7 bilhões de habitantes. Em 2010, a “classe
consumidora” chegou a 2,4 bilhões de pessoas (quase o tamanho de toda a
população mundial em 1950), representando 35% da população mundial de 6,8
bilhões de habitantes. Em 1974 havia pouco mais de 300 milhões de automóveis
(carros, caminhões e ônibus) no mundo, passando para 1 bilhão em 2010 e devendo
chegar a 1,5 bilhão de automóveis em 2025, cinco vezes mais veículos nas ruas e
estradas em 50 anos.
Para
2025, a
projeção da McKinsey é que a “classe consumidora” atinja 4,2 bilhões de
pessoas, representando 53% da população mundial projetada para 7,9 bilhões de
habitantes. Portanto, as estimativas apontam para uma “nova classe média
mundial” superior a 50% da população global de 2025, número maior do que toda a
população do Planeta em 1974, quando Celso Furtado escreveu o seu livro sobre o
mito do desenvolvimento econômico.
Em
termos de valores, o consumo mundial em 2010, calculado pela McKinsey, era de
38 trilhões de dólares, sendo 26 trilhões nos países desenvolvidos e 12
trilhões nos países emergentes. Mas para 2025, estima-se o consumo mundial de
64 trilhões de dólares sendo quase a metade (30 trilhões) para os países em desenvolvimento. Portanto,
a “nova classe média emergente”, dos países antigamente definidos como Terceiro
Mundo, terá um poder de consumo maior do que o montante atual da capacidade de
compra dos consumidores dos países desenvolvidos. Os 30 trilhões de dólares das
“classes consumidoras” dos países periféricos, previstos para 2025, será maior
do que todo o PIB mundial em 1974.
As
grandes empresas dos Estados Unidos, Europa, Japão e Coreia do Sul estão de
olho neste amplo mercado consumidor. Mesmo as empresas dos BRICS também estão
lutando para conquistar fatias crescentes deste mercado. A China tem usado
parte de suas reservas internacionais de 3,3 trilhões de dólares para apoiar a
expansão de suas empresas. A Índia tem dado todo o apoio aos seus grandes conglomerados
– como a Tata Motors.
Ou
seja, a competição é grande para abocanhar pedaços desta multidão de
consumidores, ávidos por comprar habitação, água potável, banheiro, saneamento
e produtos de limpeza e higiene, luz elétrica, geladeira, TV, DVD, CD, TV-HD,
fogão, máquina de lavar roupa, móveis, microondas, moto, bicicleta, carro,
relógio, roupa, comida industrializada, telefone, celular, TV a cabo, internet,
educação, saúde, lazer, viagens, etc.
Portanto,
parece que Celso Furtado estava errado ao considerar o desenvolvimento
econômico mundial e o acesso ao consumo conspícuo um fato inalcançável e um
mito. O relatório do Índice de Desenvolvimento Humano 2013, do PNUD, mostra que
foram os países do sul que mais tiveram ganhos no IDH. A parcela da população
mundial que vive na situação de extrema pobreza caiu pela metade – de 43% em
1990 para 21% em 2010. O relatório também prevê que até o final da próxima
década a maior parte das pessoas de classe média estarão vivendo em países
antes considerados pobres.
A
expansão do capitalismo chegou a níveis inimagináveis e a “classe consumidora”
deverá ser maioria da população mundial até 2025 (não só a McKinsey, mas outras
firmas de consultoria internacional, como a Goldman Sachs e a PwC, também fazem
projeções semelhantes). A expansão do consumo mundial em países como China,
Índia, Indonésia, Vietnam e Turquia já é uma realidade e só tende a crescer,
pois une o desejo de lucro das empresas com a vontade de consumir das pessoas.
Todavia,
parece que, infelizmente, Celso Furtado estava certo ao dizer: “se tal acontecesse, a pressão sobre os
recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem (ou
alternativamente, o custo do controle da poluição seria tão elevado) que o
sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso”. O progresso
humano tem provocado o regresso ambiental. Assim, a realidade tem sido mais
forte do que o mito, para a tristeza da Mãe Natureza que tem pagado um preço
muito alto para sustentar a generalização do consumo entre setores crescentes
da crescente população mundial.
Referências:
FURTADO,
C. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974
ALVES,
J.E.D. Progresso humano e regresso ambiental. EcoDebate, Rio de Janeiro, 2012
ALVES,
J.E.D. Países ricos perdem a maioria no PIB mundial em 2013, EcoDebate, Rio de
Janeiro, 2013
ALVES,
J.E.D. G7 versus E7: a vez dos países emergentes? EcoDebate, Rio de Janeiro,
2013
ALVES,
J.E.D. A redução das desigualdades de renda entre as regiões do mundo. EcoDebate,
RJ, 2013
McKINSEY.
Winning the $30 trillion decathlon: going for gold in emerging markets, 2012.
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate,
é Doutor em demografia e professor titular do mestrado em Estudos Populacionais
e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE;
Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
Originalmente
publicado no site EcoDebate, 20/03/2013.
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