por
Inês Castilho, do Outras Palavras
Para Nilton Bonder, ir além da satisfação individual é grande desafio da humanidade, mas não será resolvido de forma indolor |
“Estamos precisando da multiplicação dos pães”,
sustenta esse rabino que vive no Rio de Janeiro, autor de vários livros e uma
peça teatral, A Alma Imoral, de grande sucesso. Não como a reprodução
infindável de carros, tevês e microondas – mas sim como o desejo de criar e a
capacidade de usufruir de bens coletivos.
Imersos em um capitalismo globalizado que transformou
o dinheiro no maior valor individual, e o crescimento econômico no principal
objetivo político, é de nossos corações e mentes que se irradia o desequilíbrio
manifestado na natureza – lembra o autor de “Ter ou não ter, eis a questão – A
sabedoria do consumo”. No centro, a questão do individualismo: o sistema que
sacralizou o consumo e alimenta a desigualdade não tem como oferecer aos 7
bilhões de habitantes do planeta os objetos de desejo que criou, e oferece
insistentemente aos nossos olhos.
“Se todas as benesses que podemos imaginar conseguir
na vida estão no campo individual, vamos continuar querendo consumir cada vez
mais. Se não tivermos prazeres que não sejam obter, ter, possuir, em pouco
tempo vamos nos descobrir muito pobres”, alerta.
Nilton Bonder – que participa, em março, da primeira
Missão de Líderes Muçulmanos e Judeus das Américas, em Washington, nos EUA, em
busca do “diálogo e cooperação como alternativa ao fanatismo e radicalismo” –
recorda que as religiões já previam que esse modelo de poder individual é um
modelo apocalíptico que, mais cedo ou mais tarde, levaria a humanidade à
destruição.
“No paradigma de hoje, estamos incluindo os cidadãos
como indivíduos. Mas teremos de pensar em uma inclusão de cidadania que vise o
bem coletivo”, observa. Ressignificar o sentido da vida e do prazer,
transformando a relação do ser humano consigo mesmo.
Como, porém, fazer essa mudança sem perder os
direitos que conquistamos? “Essa é uma questão civilizatória complexa: como
desmontar a liberdade que foi conquistada pelo indivíduo sem que ela seja
sufocada por um Estado que venha a intervir em nome de cataclismas ou da
economia. Não conhecemos essa resposta, mas minha intuição diz que o ser humano
talvez venha a viver um processo não muito suave.”
A grande esperança, para ele, reside nos jovens. “Em
uma cultura, como a nossa, sem lastro histórico de indignação, só a juventude
tem a capacidade de se insurgir pelo direito de exercer a cidadania – até
porque é quem tem mais a perder, a longo prazo, com tudo de errado que esteja
sendo cometido neste país.” A seguir, a entrevista. (I.C.)
Como o senhor vê a participação política do
brasileiro?
Penso que estamos muito aquém de ter uma massa
politicamente consciente e ainda há muito por conquistar, embora tenhamos feito
progressos nessa área. Alguns mecanismos já estão disponíveis a boa parte do
povo, como o acesso à informação – um fenômeno planetário. Da classe C em
diante tem a televisão a cabo, que acabou com a hegemonia de uma televisão sem
nenhum tipo de reflexão.
E os próprios eventos da política nacional – eventos
traumáticos, escândalos como o impeachment de um presidente – capitalizam uma
reflexão. O Ficha Limpa também significou um amadurecimento, esses movimentos
têm um valor agregado informativo que vai além dos grupos mais prósperos.
Mas ao mesmo tempo existem aspectos culturais que não
favorecem a participação política. Não temos um histórico de indignação, as
pessoas têm uma postura muito dócil – o que, em certos momentos, é percebido
como um valor, a qualidade da tolerância, mas muitas vezes é uma falta, talvez
histórica, de o povo saber que sua indignação pode ter um grande poder.
Quais os meios que o jovem tem para atuar
politicamente?
O jovem é a grande esperança, sempre. Porque a
indignação não se manifesta necessariamente com a promoção de atos ou
distúrbios, a indignação é uma visão política, dos direitos do cidadão, e é a
juventude que tem capacidade de melhorar esses índices de indignação. As
pessoas de mais idade têm uma tendência à acomodação, elas carregam a cultura
do país, o fardo do período da ditadura.
No Congresso Nacional ainda vislumbramos autoridades
que evocam esse poder do período ditatorial, quando a autoridade era
inquestionável – um tom que perdura nas elites políticas do país. A juventude
tem essa capacidade de indignação e, mais importante, é quem tem mais a perder,
a longo prazo, com tudo de má qualidade que esteja sendo feito no país. Então,
tem um potencial muito importante, principalmente em exigir programas
responsáveis, não baseados no imediatismo, mas de longo prazo.
O senhor mencionou o Ficha Limpa. Algum outro
movimento chamou sua atenção, no Brasil ou fora dele, recentemente?
A Primavera Árabe, apesar de estarmos tão longe,
acaba sendo uma inspiração. E agora temos mobilizações nos EUA. Há uma certa
abertura para a indignação, nesse momento. Nas últimas semanas tivemos
movimentos contra a corrupção, que não têm uma agenda muito desenvolvida, são
mais para expressar a percepção de indignação.
Mas a corrupção não é isolada, ela está costurada às
leis da política brasileira. Temos necessidade de reformas nas leis que gerem a
política. A capacidade do povo brasileiro de enxergar as questões estruturais
que impactam nosso país, e se indignar com elas – se a gente conseguir isso,
teremos elevado nosso nível de questionamento político. E temos o desejo de que
haja reformas estruturais.
Quais são essas reformas?
Penso que elas começam desmontando bolsões de poder
político. Nas leis eleitorais, nas leis de distribuição de recursos, temos
práticas herdadas de construções políticas do passado que pedem reformas. Hoje
as pessoas têm noção de que a sua economia não só é onerada por índices como a
inflação, por exemplo, mas também por impostos ou pela falta de infraestrutura.
Estamos caminhando para a identificação desses
inimigos públicos, que antes ficavam muito localizados no escândalo. Hoje o que
é escandaloso é o uso de recursos públicos para atender agendas que são
pessoais, de indivíduos ou grupos políticos: três bilhões de reais distribuídos
em emendas no Congresso, num país com carência em todas as áreas de
infraestrutura. É um processo político que todo mundo diz que entende, mas que
provoca certa indignação. Formas de corrupção construídas na própria
legitimidade das leis. É essa consciência e essa indignação que seria muito importante
de serem trazidas a um conhecimento maior. Mas já avançamos na massa crítica
que identifica essas questões.
Quais os temas que mobilizam a sociedade brasileira,
a seu ver?
Estamos imersos nesse neoliberalismo, um capitalismo
globalizado que nos achatou culturalmente, embora todos tenhamos
peculiaridades. Hoje, mais do que qualquer outra coisa, a economia é o valor. E
isso vai além da questão política – mesmo áreas em que antes se tinha uma
filiação, uma relação com as raízes culturais, são totalmente sobrepassadas por
essa questão econômica.
Na questão religiosa, por exemplo, muitas pessoas
deixaram sua religião de raiz, dos pais, avós etc., para aderir a religiões que
oferecem, além do discurso religioso, algum tipo de agremiação e ajuda mútua,
de promoção na área econômica. Isso é presente até mesmo no Brasil, que tem
raízes religiosas profundas. Esse é o fundamento, também, da política: os que
são eleitos estão fundamentados na melhoria da área econômica, e isso suplantou
até mesmo o discurso da qualidade de vida pela educação, pela saúde. É uma
tendência global. Todos os países que fazem parte da modernidade e que aderiam
a certas formas de comercialização, de economia mundial, estão vivendo sob o
impacto da soberania econômica.
Isso me leva a pensar na questão do consumo.
É o consumo que alavanca toda essa perspectiva.
Consumir é identificado imediatamente com qualidade. É interessante que a gente
pegue, nesse universo, modelos de países desenvolvidos – os verdadeiros, não os
de marketing. São os países do norte europeu, que não são extremamente
consumistas e valorizam saúde, educação, segurança, cidadania básica acima do
consumo. Mas os emergentes, e mesmo a própria Europa, hoje, fora os países
nórdicos, aderiram a essa crença de que é o consumo, o crescimento que vai
produzir bem-estar.
A liberdade ainda é uma bandeira?
A liberdade é uma conquista que, penso, as pessoas
não tolerariam que fosse de qualquer maneira cerceada. É um dos alicerces dessa
civilização que estamos construindo. A mesma coisa com a consciência ecológica,
que vai ganhando força. Temos avançado tanto nesse território – liberdade para
as mulheres, para os homossexuais, para as minorias religiosas. A liberdade
está muito presente, e não há percepção de ameaça a essa questão, hoje.
Bandeiras que há 20 anos ou 10 anos eram impactantes se consolidaram como
conquistas.
O senhor considera que as redes sociais têm um papel
na mobilização política?
Elas ainda são um meio utilizado pelas classes mais
abastadas, não desenvolveram o potencial que podem ter. Mas estão se tornando
uma mídia que abrange cada vez mais a sociedade. São um veículo extremante
interessante, que derrubou certos modelos de comunicação, como a antiga rádio,
que era um grande instrumento dos políticos no interior. Começa a existir um
outro parâmetro nas comunicações – e aí o impacto é grande.
Pensando em tudo isso, como o senhor imagina novas
formas de ação política?
O Brasil não precisa mais de heróis. As pessoas
amadureceram para buscar lideranças, individuais ou partidárias, que sejam
realmente comprometidas com uma agenda de trabalho. Essa é a grande “ficha
limpa” que vamos realizar. A gente precisa de pessoas que tenham um histórico
de envolvimento com o trabalho em suas vidas. A Marina Silva foi exemplo disso,
ela alavancou uma votação que não se imaginava. Havia ali um discurso que não
dizia “vou baixar 10 reais o preço de não sei o quê, tirar 50 centavos do
transporte público”. Não havia promessa, mas uma pessoa que esboçava inclusive
suas limitações. Esse é o personagem cada vez mais buscado pelas pessoas.
No Nordeste também tivemos políticos bem votados, que
mostraram certa seriedade e se afastaram desse lugar do populismo. Essas novas
lideranças só não emergem com mais força porque temos a corrupção agindo. A
corrupção é a quantidade de tempo que certos partidos ou grupos conseguem na
televisão – e que não é construído com legitimidade real, de trabalho, mas em
cima, de novo, de corrupção dentro da legalidade. As luzes estão se voltando
para esses absurdos – e penso que eles serão extintos.
Que valores sustentam essa consciência nascente?
Valores importantes. Temos tido uma presença maior do
trabalho formal, deixando para trás um país que queria levar vantagem, um país
do jeitinho brasileiro, da informalidade. As pessoas estão pagando impostos,
participando de toda essa estrutura cívica que é o contrato social. O trabalho
hoje é um valor no Brasil, um valor importante, que leva as pessoas a buscar
economizar, a vislumbrar uma estratégia em suas vidas. Diria que o valor do
trabalho é uma espécie de autovalor, a inclusão das pessoas na cidadania.
A formalização do trabalho também tira as pessoas de
certa clandestinidade, e faz com que elas passem a valorizar a honestidade.
Mais brasileiros podem ser honestos, hoje, e os honestos demandam mais
honestidade. Penso que essa é uma das grandes mudanças que têm acontecido: mais
pessoas vivendo o valor da honestidade e fazendo essa demanda por honestidade.
Pensando no futuro, como o senhor vê as novas
gerações convivendo em um planeta tão pequeno?
Vamos precisar de muita, muita maturidade. Porque o
desequilíbrio que a gente aponta na natureza, no clima, esse desequilíbrio é
estrutural nosso. No centro está a questão do consumo, da riqueza. Não sabemos
lidar com a riqueza, estamos deslumbrados. É também um mundo muito
individualista. Fomos para um caminho que economicamente se mostrou mais
viável, mais eficiente, mas há um paradoxo nessa eficiência.
Estou falando de um capitalismo que não conseguirá, a
médio prazo, produzir qualidade de vida para todo o planeta – se todos formos
ter um carrinho e todos os objetos que são hoje apresentados como sonho de
consumo. Talvez até pudéssemos ter esses objetos, mas veríamos o surgimento de
problemas muito graves, climáticos e de qualidade do ar, da água. Falamos disso
como se fosse virtual, mas pouco a pouco essas coisas vão se mostrar reais.
Vamos ter de conhecer algum tipo de processo mais
coletivo, de interesse coletivo. Nesse paradigma que vivemos hoje, estamos
incluindo os cidadãos como indivíduos – agora mais gente pode comprar, pode
exercer a cidadania. Mas a cidadania do indivíduo é um pouco como aquela
historinha: o sujeito sentado em um barquinho e começa a fazer um buraco
debaixo da sua cadeira. Quando as pessoas começam a reclamar, “você está
fazendo um buraco no barco”, ele diz “não se mete, estou fazendo debaixo do meu
banco”.
É um pouco como funcionamos – estamos construindo o
direito de todos fazermos um buraco debaixo do nosso banco. Só que em algum
momento vamos perceber que isso não é um direito, e então teremos de pensar uma
inclusão de cidadania que vise o bem coletivo. Isso vai ser muito complexo para
todos nós, vai exigir maturidade para fazer acertos que não sejam violentos. É
uma questão civilizatória muito complexa: como é que vamos desmontar o direito
que foi dado ao indivíduo, essa liberdade, sem que ela seja sufocada por um
Estado que venha a intervir em nome de cataclismas ou da economia? Quando um
país começa a falir, a tendência é surgir um estado autoritário, porque alguém
tem que fazer o que tem de ser feito. Então, é muito complicado.
Falando no longo prazo, eu usaria até mesmo uma
imagem bíblica: estamos precisando da multiplicação dos pães. O mundo não vai
poder ter um automóvel para cada um dos seus 7 bilhões de habitantes, nem um
microondas, nem uma televisão. Do ponto de vista da economia, isso talvez seja
um sonho maravilhoso, mas esse sonho é inviável. Em algum momento vamos
conhecer a inviabilização desse projeto. A multiplicação dos pães não é a
multiplicação dos carros e dos microondas, mas o conhecimento de qual riqueza
nós dispomos e a capacidade de usufruir, não do fato de ter eu um carro, mas
sim de ganhar alguma qualidade coletiva. Se todas as benesses que podemos imaginar
conseguir na vida estão no campo individual, vamos continuar querendo consumir
cada vez mais. Se não tivermos prazeres que não sejam obter, ter, possuir; se
não tivermos prazeres que são coletivos, em pouco tempo vamos nos descobrir
muito pobres. A multiplicação dos pães não é no sentido exponencial, como se
pode imaginar. É a criação de outros valores, valores que façam as pessoas
terem como objeto de consumo coisas coletivas. O que é coletivo modifica
qualitativamente a relação de consumo.
A espiritualidade teria um papel nessa mudança?
As religiões, de forma muito profética, mas
obviamente sem ter os instrumentos para saber quando isso aconteceria,
anteciparam esses eventos. O projeto de poder do homem, por mais que seja
controlado pela democracia, o levaria mais cedo ou mais tarde à destruição.
As religiões antecipavam que esse modelo de poder
individual é um modelo apocalíptico. É um modelo que vai levar as pessoas a um
conflito muito grande, e elas então vão precisar de uma nova consciência. Os
profetas falavam em uma circuncisão no coração. As pessoas teriam uma nova
perspectiva do que é a vida, do que é o prazer, de qual é o sentido da vida, e
essa seria uma mudança qualitativa na relação que o ser humano tem consigo
mesmo. Penso que essa é a grande mudança que viveremos, lá na frente. Seremos
uma população consciente, que vai olhar para nós, que vivemos hoje, como seres
primitivos – e a ênfase no individualismo está no centro desse primitivismo.
Como fazer essa mudança sem perder os padrões de
liberdade que a gente tem hoje? Sem promover nenhuma forma de repressão aos
prazeres, às conquistas que o ser humano alcançou? Essa é a resposta que não
conhecemos. Mas minha intuição diz que o ser humano talvez venha a viver um
processo não muito suave.
Entrevista a Inês Castilho | Imagem: Jac Depczyk
* Publicado originalmente no site Outras Palavras e republicado no site da Agência Envolverde, 17/01/2013.
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