Em nome de superar os entraves ao crescimento, a função social da
terra de proteger o meio ambiente passa a ser colocada em xeque por um
setor tido como moderno.
[Le Monde Diplomatique Brasil]
O ex-ministro da Agricultura do governo Lula, Roberto Rodrigues, é
ardoroso defensor de um “programa amplo de avanço” do agronegócio por
meio de políticas que evitem a “amputação de áreas agrícolas”, que, em
sua visão, vêm sendo ameaçadas por demarcação de terras indígenas,
unidades de conservação, terras quilombolas ou demandas para atender à
reforma agrária.
Em agosto, os jornais noticiaram um protesto de trabalhadores rurais,
sem-terra, indígenas, quilombolas e outros movimentos na Esplanada dos
Ministérios, em Brasília. Invasão, conflito, tumulto, trânsito caótico
foram os arquétipos mais usados para descrever a ocasião. Pouco se
falou, no entanto, da dimensão histórica daquele momento que foi, na
realidade, uma resposta à amputação de terras e direitos de comunidades
tradicionais.
O protesto foi o ato final do II Congresso Nacional dos Trabalhadores
e Povos do Campo, ocorrido 51 anos depois do primeiro encontro. Foi no
governo de João Goulart, em 1961, que camponeses se reuniram pela
primeira vez para encontrar uma pauta comum a diversos movimentos
sociais. Era o auge da discussão sobre reforma agrária. Na mesa de
abertura, ao lado do presidente da República, estava Tancredo Neves,
então primeiro-ministro do governo, Magalhães Pinto, governador de Minas
Gerais na época (um dos artífices do golpe de 1964), e Francisco
Julião, homem das ligas camponesas.
Sob gritos de “Reforma agrária na lei ou na marra”, camponeses se
articulavam como agentes políticos. A representatividade do momento fez o
governo Goulart incorporar a reforma agrária como pauta política e,
assim, a questão da terra passou a fazer parte das reformas de base,
contrariando interesses da elite latifundiária.
Com o golpe de 1964, toda a articulação para fazer a reforma agrária
acontecer foi desmantelada, com a repressão recaindo principalmente
sobre os sindicatos rurais, que naquele momento puxavam, ao lado das
ligas, o movimento. Por ironia, tudo aquilo que o governo Goulart queria
fazer para acelerar a reforma agrária, como estabelecer na lei a
desapropriação das terras utilizando como pagamento títulos da dívida
agrária, os militares o fizeram. Mas somente no papel. Não aplicaram
nada.
Na prática, os militares transferiram o conflito fundiário do Sul,
Sudeste e Nordeste para a Amazônia, o que lhes resolveu dois problemas:
usavam a massa de trabalhadores deslocados para ocupar a região – daí o
slogan do governo Médici: “Uma terra sem homens para homens sem terra” –
e esvaziavam o conflito onde ele se apresentava sob a forma da
reivindicação da democratização da posse da terra.
A lição dos militares fez escola e foi seguida pelos governos FHC e
Lula. Em ambos, quando se falava em reforma agrária, nunca se mostrava o
dado real: a distribuição maciça de terras recaía sobre áreas públicas
na Amazônia, que já pertenciam ao Estado. Não se alterava o quadro de
concentração fundiária nas mãos de particulares.
Esse deslocamento populacional, junto com os grandes projetos na área
de mineração, pecuária, construção de estradas e hidrelétricas, em
menos de trinta anos provocou a mais radical transformação do espaço
amazônico em toda a história, levando ao quadro que hoje se consolidou:
praticamente 20% de toda a extensão da floresta já foi derrubada. Poucos
ganharam, muitos sofreram. Como canta Vital Farias na saga da Amazônia,
“pois mataram índio que matou grileiro que matou posseiro, disse um
castanheiro para um seringueiro que um estrangeiro tomou seu lugar”.
A alteração desse quadro só ocorreu com a fundação do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que surgiu a partir da retirada
dos trabalhadores da Fazenda Anoni (RS), que seria devolvida aos índios
Kaingang no governo do presidente João Figueiredo (1979-1985), o último
do ciclo de governos militares.
O MST restaurou a força do debate sobre a posse da terra, um dos
principais temas da Assembleia Nacional Constituinte, em 1988. Para
enfrentar essa discussão, a bancada do agronegócio criava o Centrão, que
unia deputados e senadores de praticamente todos os partidos no intuito
de afastar do texto da nova Constituição qualquer regra que
possibilitasse a democratização da terra.
O Centrão venceu, mas isso não impediu que o MST avançasse,
tornando-se uma força política importante. O auge dessa força se fez
presente no governo FHC, quando o movimento organizou uma marcha de
milhares de pessoas até Brasília e seus líderes foram recebidos pelo
presidente. Na época, a Globo exibia a novela O rei do gado, que
mostrava a luta dos sem-terra. Patrícia Pillar era uma sem-terra por
quem Antônio Fagundes, o rei do gado e de terras, se apaixonava. Em
paródia à novela, os humoristas do Casseta&Planetacriaram um quadro
dizendo: “Reforma agrária já, desde que com a Patrícia Pillar”.
Foi quando FHC criou o Ministério do Desenvolvimento Agrário e passou
a desapropriar terras também no Sul e Sudeste. Com isso vieram os
conflitos e a violência, culminando no massacre de Eldorado dos Carajás,
em 17 de abril de 1996, no Pará, onde vários sem-terra foram mortos
pela Polícia Militar.
Com o presidente Lula no poder, a melhora da situação econômica do
país e o aumento da rede de proteção social (a exemplo de programas como
o Bolsa Família), diminuiu o número de pessoas que encontravam na
reforma agrária uma forma de garantir seu sustento. Ao mesmo tempo, o
agronegócio se expandiu, assumindo o papel de âncora da economia,
resultado do aumento vertiginoso das exportações de produtos agrícolas.
E, apesar das promessas, pouco se avançou na era Lula para garantir uma
melhor distribuição de terras e evitar a concentração fundiária.
Agora, no governo Dilma, com a realização do Congresso, tenta-se
criar uma pauta unificada de reivindicação de todos os setores que lutam
pela democratização da posse da terra. A realidade, entretanto, é
radicalmente distinta daquela do primeiro encontro. As formas de
ocupação da terra no Brasil são muito mais amplas do que aquelas que se
abrigavam debaixo do guarda-chuva da reforma agrária na década de 1960.
Infelizmente, o problema da terra, em suas novas e antigas dimensões,
permanecerá por muito tempo como a grande questão nacional
(parafraseando Joaquim Nabuco, que fez tal afirmação se referindo à
escravidão). E a disputa pela terra passa a sofrer novas mutações. A
mudança do Código Florestal é apenas a primeira delas. Em nome de
superar os entraves ao crescimento, a função social da terra de proteger
o meio ambiente passa a ser colocada em xeque por um setor tido como
moderno. Ao que tudo indica, o enfrentamento mal começou.
Sérgio Leitão – Advogado e atua como diretor de políticas públicas do Greenpeace
Renata Camargo – Jornalista especialista em direito ambiental e atua como coordenadora de políticas públicas do Greenpeace
Ilustração: Daniel Kondo
Artigo originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil e republicado pelo EcoDebate, 14/01/2013.
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