Gilvander Luís Moreira1
[EcoDebate] Era dia 28 de janeiro de 2004, 8h20 da manhã, em uma emboscada, cinco
jagunços dispararam rajadas de tiros em quatro fiscais da Delegacia
Regional do Ministério do Trabalho, perto da Fazendo Bocaina, município
de Unaí, Noroeste de Minas Gerais. Passaram-se 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8
anos. Já foi aprovada a Lei 12.064, que criou o dia 28 de janeiro como
Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Mas e a Justiça? Por onde
anda? No dia 28 de janeiro de 2013 completam 9 anos da chacina.
Na
maior chacina contra agentes do Estado Brasileiro, foram ceifadas as
vidas de Erastótenes de Almeida Gonçalves (o Tote), de 42 anos, João
Batista Soares Lage, 50, e Nelson José da Silva, 52, além do motorista
Aílton Pereira de Oliveira, 52. Por quê? Como servidores éticos, estavam
cumprindo seu dever: fiscalizando fazendas do agronegócio no município
de Unaí. Multaram vários fazendeiros. A família Mânica, por exemplo, foi
multada em mais de 3 milhões de reais. Motivo das multas: trabalhadores
em situações análogas à escravidão, sobrevivendo em condições precárias
e imersos no meio de uso exagerado de agrotóxicos. Por isso, os fiscais
foram ameaçados de morte. O fiscal Nelson chegou a fazer um relatório
alertando sobre as ameaças que vinha sofrendo.
Uma
Tese de Doutorado, de 2007, em Psicologia Social, pela UNB, da Dra.
Magali Costa Guimarães, sob o título “Só se eu arranjasse uma coluna de
ferro pra aguentar mais…”, sobre o custo humano – o que acontece com os
trabalhadores rurais – na colheita do feijão no município de Unaí,
afirma:
“Também se ouviu, por parte dos trabalhadores, muitos comentários e queixas sobre o uso de produtos químicos na planta (denominados por eles como ‘veneno’),
alguns relatam que o cheiro faz com que tenham dores de cabeça e
mal-estar. Outros se queixam, pois acham que, muitas vezes, os
produtores não esperam o prazo correto – período de carência – para
colher (segundo alguns, de três dias), daí acabam passando mal na hora
de processar o arranquio do feijão. O ‘veneno’ aparece, inclusive, como resposta do trabalhador à pergunta: “o que em seu trabalho não te faz sentir bem?” É o ‘veneno’,
junto com outras características das condições de trabalho, da
atividade e da organização, gerador de mal-estar no trabalho.Mas, mais
do que mal-estar, os problemas de saúde e adoecimentos ligados ao uso
indevido ou à exposição a agrotóxicos já foram identificados em
diferentes estudos científicos que revelam ser uma ocorrência bastante
comum no setor agrícola. Os estudos citados mostram que este uso e/ou
exposição tem sido responsável por doenças respiratórias, no sistema
reprodutivo – infertilidade, abortos, dentre outras – e diferentes
formas de manifestação de câncer.”
Quem
matou e quem mandou matar? Um arrojado processo de investigação das
Polícias Federal e Civil apresentou um grande elenco de provas robustas,
tais como: confissão dos jagunços que estão presos, pagamento de 45 mil
reais em depósito bancário, nomes e identidades dos jagunços no livro
do hotel, em Unaí, onde estavam hospedados os fiscais, comprovando que
lá dormiram também os jagunços; depoimento do Ailton, motorista dos
fiscais, que, após recobrar a consciência depois do massacre ainda
encontrou forças para dirigir a camionete até a estrada asfaltada, mas
morreu sendo levado para socorro em Brasília; uma série de telefonemas
entre os jagunços e mandantes, antes e depois da chacina; um automóvel
encontrado jogado dentro do lago Paranoá, em Brasília; relógio do
Erastótenes encontrado dentro de uma fossa, na cidade de Formosa, GO
etc.
No
3º aniversário da chacina, dia 28 de janeiro de 2007, no local onde o
sangue dos fiscais foi derramado na terra mãe, Dom Tomás Balduíno, da
Comissão Pastoral da Terra (CPT) alertou: “Os fiscais são mártires da
luta contra o Trabalho Escravo. A Comissão Pastoral da Terra diz que há
mais de 25 mil pessoas ainda submetidas a situação análoga à escravidão
no Brasil. Os fiscais foram vítimas do agronegócio, das monoculturas da
soja, do feijão, da cana-de-açúcar, do eucalipto. Exigimos justiça já,
em nome do Deus da vida.”
Marinês, viúva do fiscal Erastótenes, com a voz embargada, em meio a lágrimas, clamou por justiça:
“Ao
saber que meu amado marido Erastótenes tinha sido assassinado junto com
João Batista, Nelson e Ailton, uma espada de dor transpassou meu
coração e continua transpassando, porque a justiça ainda não foi feita. A
dor e a angústia continuam muito grandes diante da impunidade. Pelo
amor de Deus, julguem logo os assassinos, jagunços e mandantes. Os
fiscais foram assassinados durante seu trabalho, por trabalharem bem,
por serem honestos, por não se corromperem e por cumprirem o seu dever.
Exigimos justiça! Que mais este massacre não fique na impunidade."
A
família do Ailton passou necessidades econômicas após a morte dele. As
viúvas dos fiscais fizeram “vaquinha” para ajudar dona Marlene, viúva do
Ailton. As famílias dos fiscais foram postas em um tipo de prisão
domiciliar. O medo de pessoas estranhas, a solidão, a tristeza, a
angústia, uma espada de dor transpassando o coração, insônia, problemas
de saúde, dificuldades, muitas lágrimas. Tudo isso passou a ser pão de
todo dia para as famílias.
Dona Marlene diz que gostaria de se encontrar com os jagunços e com os supostos mandantes e perguntar a eles: “Por
que vocês fizeram isso? Por qual motivo? Vocês não tiraram a vida
apenas de quatro pais de família. Vocês transtornaram a vida de nossas
famílias e de nossos amigos. Meu pai e minha mãe adoeceram e morreram. A
mãe do Ailton também. Tenho certeza que também por causa disso.”
Dona Marlene acrescenta:
“Nas
festividades – datas de Natal, Páscoa, aniversário dos filhos, na
formatura dos filhos – sentimos muito a falta do Ailton. Isso dói muito.
Meu filho Ariel, dia 26 de janeiro de 2004, completou 15 anos de idade.
Nesse dia, o Ailton saiu de casa para levar os fiscais. Dois dias após,
Ailton e os fiscais foram assassinados. Esse foi o presente de
aniversário que meu filho recebeu. Por isso meu filho não gosta de falar
sobre esse assunto. Hoje, graças a Deus, já formado em Economia, Ariel é
um filho exemplar e honrado. Teve que fazer acompanhamento psicológico
para superar muitos problemas. Fomos colocados numa espécie de prisão.
Espero que também os mandantes sejam presos. Eles precisam experimentar a
solidão da prisão. No julgamento não podem condenar só os jagunços, mas
também os mandantes. Precisam condenar os pequenos e os grandes.”
Dona Marlene manda também um recado às pessoas de boa vontade:
“Marquem
logo esse julgamento. Não tardem mais! Eu peço a todos que perderam
algum parente assassinado que venham participar do julgamento. Fiquem ao
nosso lado. Espero que todas as pessoas nos ajudem nesse julgamento.
Participem. Quem passou pela mesma dificuldade, venha participar conosco
do julgamento. Assim poderemos ter um pouco de justiça nesse nosso
Brasil.”
Sobre o pai Ailton, o motorista dos fiscais, a filha Rayanne Pereira, já formada em Biologia, diz:
“Meu
pai Ailton era um homem de um coração bondoso. Ele estava sempre
disposto a ajudar as pessoas e a socorrer quem precisava. No
sepultamento do meu pai, aqui em Prudente de Morais, havia gente demais,
parecia que tinha morrido uma grande autoridade. É que o meu pai era
querido por todos aqui na cidade. Homem trabalhador, Ailton trabalhou na
Embrapa, na LBA, no DNER e, por último, no Ministério do Trabalho. Meu
pai foi um herói, inclusive, porque, mesmo baleado, dirigiu vários
quilômetros rumo ao hospital. Ao ser encontrado por policiais, ele
repetia: “Socorre meus companheiros, os fiscais. Cuide deles. Eles não
podem morrer.” Assim, meu pai pensava, primeiro, nos outros e não nele
mesmo. O Ariel, meu irmão, e eu aprendemos muitos bons valores com nosso
pai e com nossa querida mãe que teve força para erguer a cabeça e
continuar cuidando de nós. Tudo que sou devo ao meu pai e a minha mãe
que me ensinaram a seguir a lado certo da vida. Meu pai foi voluntário
no asilo, ajudou a alfabetizar várias pessoas. Ele e minha mãe sempre
ajudaram muito a comunidade aqui de Prudente de Morais.”
Morando
na cidade de Unaí, Helba Soares da Silva, viúva do fiscal Nelson, ao
tentar buscar explicações para tantas perguntas angustiantes, diz: “Eu
já consegui perdoar os assassinos. Agora é eles e Deus. Eu me perguntei
muito ‘Por que Deus colocou o Nelson no meu caminho para eu viver com
ele somente quatro anos?’ Deus me deu a resposta: O Nelson precisaria de
alguém em Unaí para continuar gritando por ele.” Nelson conheceu
Helba, enquanto fiscalizava um Frigorífico de Unaí, onde Helba
trabalhava. De fato, Elba nos últimos nove anos tem sido uma batalhadora
incansável para que o julgamento da Chacina de Unaí aconteça e a
justiça reine.
A
juíza da 9ª Vara Federal de Belo Horizonte, Raquel Vasconcelos Alves
de Lima, responsável pela ação penal da chacina de Unaí, prometeu marcar
a data do julgamento em fevereiro próximo. Que seja o quanto antes e na
capital de Minas, longe do poder do agronegócio de Unaí.
Enquanto
reina a injustiça, a impunidade, o município de Unaí se transformou em
campeão na produção de feijão, no uso de agrotóxico e no número de
pessoas com câncer. Relatório do deputado Padre João (PT) demonstra que o
número de pessoas com câncer, em Unaí, é 5 vezes maior do que a média
mundial. A cada ano, 1260 pessoas contraem câncer na cidade. Aliás, um
hospital do câncer já está sendo construído na cidade, pois ficará menos
oneroso do que levar toda semana vários ônibus lotados de pessoas para
se tratarem de câncer no Estado de São Paulo. A terra, as águas e a
alimentação estão sendo contaminadas pelo uso indiscriminado de
agrotóxico. Trabalho escravo e agrotóxicos matam!
Belo Horizonte, 21 de janeiro de 2013.
Obs.: Para maiores informações, sugiro assistir aos vídeos nos links, abaixo:
1) Chacina dos fiscais em Unaí: Entrevista com a viúva do Ailton, Marlene e filha Rayanne. 18/01/2013
2) 8 anos do massacre de 4 fiscais do MTE, em Unaí – Entrevista com Calazans – 1a parte – 12/01/2012
3) Matéria 6 anos de Impunidade – Chacina de Unaí
1 Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br – www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis – facebook: Gilvander Moreira
Originalmente publicado no site EcoDebate, 22/01/2013.
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