[Jornal
da Ciência] Conheci a cidade de Tucuruí em 1988, quatro anos depois de
inaugurada a hidrelétrica que interrompeu o fluxo natural do rio Tocantins.
Era, então, um espaço populoso, deteriorado e caótico, impressão que se
amplificou ao visitar o núcleo urbano da construtora Camargo Correa, protegido
por muros, guaritas e homens armados, com casas amplas e ajardinadas, com um
confortável hotel para os hóspedes ilustres e com uma bela vista do vertedouro
e do lago formado pela barragem. No tour pela usina, um funcionário da
Eletronorte orgulhosamente apontou para uma ilhota, informando que a empresa
instalara ali um banco genético das espécies vegetais que ocorrem (ocorriam?)
na região, sem nada esclarecer sobre as copas de árvores mortas que emergiam
por todo o imenso lago, visão que lembra, de imediato, em qualquer espectador,
um cemitério repleto de cadáveres mal enterrados. Inquirido por que as árvores
não foram retiradas, o funcionário tergiversou (alguém ainda lembra do
escândalo Capemi?).
Os danos sociais e
ambientais – para não falar das questões éticas e nem da corrupção – que as
grandes obras de infraestrutura provocam na Amazônia já foram plenamente
demonstrados por muitos pesquisadores e jornalistas, assim como também já foi
comprovado que os efeitos benéficos desses empreendimentos não se localizam na
região, isto é, as promessas de desenvolvimento e oportunidades são cumpridas a
muitos quilômetros de distância, às vezes, em outros países e continentes. Na
região ficam apenas os royalties (a maior parte dos impostos é desonerada pelo
governo federal), o passivo ambiental, alguns empregos disputados por hordas de
imigrantes e muita miséria e violência. Esse é um efeito perverso, mas não
fortuito. A transferência de matéria-prima e energia da Amazônia para outros
lugares faz parte de um projeto colonizador gestado na ditadura militar
(1964-1985), que define a região como provedora de recursos para o Brasil – e
somente isso. Infelizmente, finda a ditadura há quase 30 anos, esta ainda é a
visão que prevalece nos círculos de poder mais importantes de Brasília.
As instituições do governo
federal responsáveis pelo planejamento, pelo financiamento e pela execução das
grandes obras conhecem muito bem esse processo de socialização dos prejuízos.
Sabem o que ocorre com os municípios que abrigam tais obras, os efeitos
nefastos sobre os sistemas locais de saúde e educação, sobre os preços e a
moradia, sobre o transporte, sobre a estrutura fundiária, sobre os modos de
vida, sobre a floresta, os animais e os rios. Isto tudo já foi documentado, mas
parece não fazer parte ou não importar para o governo que planeja e os
empreendedores que constroem. Exemplo atual são os bilhões investidos pelo
governo federal na construção da primeira usina do rio Xingu, sem a necessária
contrapartida em gastos sociais e ambientais. Ou sem o fortalecimento – em
igual proporção – de instituições fundamentais para a governança da região,
como a Funasa, o Ibama, a Funai e a Polícia Federal. Ou, ainda, sem uma visão
estratégica do planejamento regional e sem a aplicação de recursos – também em
igual proporção – em pesquisa científica e tecnológica relevante para a
conservação e o desenvolvimento da região. Apesar da distância que separa o
governo dos generais e o atual governo democrático do Brasil, em termos de
política energética, parece não haver diferenças significativas entre o ano de
1975, quando a UHE Tucuruí começou a ser erguida, e o de 2012, início das obras
de Belo Monte. O que mudou foi o discurso politicamente correto de
sustentabilidade, mas que se revela sempre como retórica frente às ações
concretas.
O mais recente número do
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas (dezembro de 2012)
encerra um dossiê que aborda esse tema, certamente um dos mais importantes da
atualidade, pois tem como horizonte o destino e o futuro da região. Foram
convidados três especialistas para responder a seguinte pergunta: as
hidrelétricas na Amazônia geram desenvolvimento para quem? O texto do
jornalista Lúcio Flávio Pinto (Jornal Pessoal, Pará) parte da experiência
histórica da UHE Tucuruí para questionar a construção de Belo Monte, seja nas
dúvidas provocadas pelo projeto da obra, na fragilidade dos estudos de
viabilidade econômica ou na falta de transparência do governo no processo de
planejamento e execução. A geógrafa Bertha Becker (Universidade Federal do Rio
de Janeiro) prossegue com um enfoque geopolítico, criticando a falta de
integração das grandes hidrelétricas na Amazônia com uma política justa de uso
e gestão da água. Ao mesmo tempo em que se prioriza o atendimento às demandas
por energia existentes no centro-sul do Brasil e a construção de vias de
escoamento de commodities, desconsidera-se a falta de saneamento básico e de
acesso à energia elétrica na própria Amazônia. Finalmente, para o engenheiro
Francisco Del Moral Hernandez (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho, São Paulo), a política energética do governo federal, expressa em planos
decenais, deve ser democratizada de maneira a promover o debate público sobre
fontes de energia, demanda e oferta, sustentabilidade, impactos ambientais e a
efetiva proteção das populações locais. Segundo o autor, também é necessário
rever e ajustar o processo de licenciamento ambiental, desde os conceitos
básicos que sustentam a avaliação dos analistas, como o de ‘área afetada’, até
a inclusão de novos pontos de análise, como o descomissionamento de
hidrelétricas.
Essas contribuições iluminam
o debate sobre o assunto e incentivam a ampliação de pesquisas sobre
planejamento regional, políticas públicas, uso e gestão da água, democracia e
bem-estar social no Brasil. A agenda desenvolvimentista foi revigorada com
grande ímpeto, travestida de expressões que encantam a imprensa, como
‘crescimento econômico’, e parece ter sido capturada por fortes interesses
econômicos e pelo pragmatismo do governo brasileiro. Mais do que nunca é
necessário refletir sobre esse processo e oferecer informações responsáveis à
sociedade para que a história contemporânea da Amazônia, de Tucuruí aos novos
projetos hidrelétricos dos rios Xingu, Madeira e Tapajós, venha a ter outros
ingredientes além do autoritarismo.
Para acessar a revista,
clique aqui.
Nelson Sanjad é editor
científico do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Artigo socializado pelo Jornal
da Ciência / SBPV, JC e-mail 4680 e publicado pelo EcoDebate, 11/03/2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário